Common law, civil law, juízes e psicanalistas no mundo contemporâneo 08/04/2021

Dorothee Rüdiger

“O psicanalista se autoriza por si mesmo.” Jacques Lacan

Juízes e psicanalistas têm muito mais em comum do que geralmente se pensa. Escutam, analisam, responsabilizam. Tomam decisões capazes de precipitar mudanças na vida do outro. Quem os autoriza? Em que regras se apoiam quando atuam?

Desde que Jacques Lacan deu nova vida ao tratamento psicanalítico criado por Sigmund Freud os psicanalistas lacanianos se formam no divã. Mais do que o percurso formal acadêmico, um psicanalista se autoriza a exercer seu ofício a partir do próprio inconsciente,  a partir de seu desejo. Isso não quer dizer que possa dirigir uma análise a seu  bel-prazer. Ao contrário. Embora não existam para os lacanianos os standards estabelecidos pelos pós-freudianos, há princípios a observar:  “O psicanalista certamente dirige o tratamento,” … “não deve de modo algum dirigir o paciente,” ensina Lacan. Em outras palavras, embora tenha a liberdade de criar um estilo singular e fazer de cada tratamento um processo único, o psicanalista segue a ética da escuta.

Por outro lado, em que se apoiam os juízes quando decidem? Investidos de autoridade pelo Estado onde atuam criam soluções para conflitos que se tornaram jurídicos.  No entanto, o ofício dos juízes, hoje, não demanda somente o conhecimento e a habilidade de interpretar as leis, mas,  cada vez mais, criatividade. Dependendo do sistema jurídico em que se encontra o Estado as possibilidades dos juízes criarem direito podem ser mais restritas ou mais amplas, como veremos a seguir.

Para entender o direito, a política e a questão da justiça no mundo globalizado em que vivemos é importante saber como funcionam  dois grandes sistemas jurídicos,  o common law, o direito anglo-saxônico, e o civil law, o direito romano germânico.

O direito anglo-saxão e o direito romano-germânico dividem entre si a influência sobre o direito na maioria dos Estados contemporâneos. Grosso modo, pode-se dizer que o common law é aplicado nos países com tradição inglesa, tais como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, Índia e em países da África que pertencem ao Commonwealth of Nations,  enquanto o civil law  é aplicado na Europa  continental incluindo a Rússia, no Japão, na América Latina e nos países da África com influência francesa, alemã e portuguesa. Exceções existem. Na província do Quebec,  no Canadá,  segue-se  o civil law e na Guiana Inglesa o common law, o que revela, que o direito  se desenvolveu de forma diferente na história, chegando aos nossos dias com a dificuldade de dar conta da globalização e de seus desafios.

Vamos às apresentações.  O common law é um sistema jurídico (ou uma família jurídica) que engloba o direito praticado em vários Estados nos quais as decisões dos juízes são baseadas na jurisprudência, ou seja, nas decisões prévias de outros juízes em casos semelhantes. Dentre essas decisões existem algumas que são mais importantes que as outras, as chamadas stare decises que são praticamente obrigatórias a serem observadas e difíceis de serem reformadas. Existem leis nesses Estados que vinculam as decisões dos juízes. No entanto, a grande maioria das decisões baseia-se na jurisprudência.

Já o civil law  é o sistema que junta o direito de vários países, nos quais os juízes são obrigados a basear suas decisões nas leis codificadas. O poder judiciário tem, portanto, uma função mais interpretativa do que criativa. As decisões anteriores de outros juízes também são importantes para orientarem a interpretação da lei, mas não têm o mesmo peso que possuem no common law.

Como já foi dito, a maneira como os Estados organizam seu direito interno tem origens históricas. É curioso que os dois sistemas jurídicos contemporâneos nasceram praticamente na mesma época, isto é, no século XII, na “época das cruzadas”, para dar uma referência.  O que havia antes da criação e consolidação do direito “comum”, o common law, pelo rei Henrique II da Inglaterra era uma verdadeira colcha de retalhos de normas e costumes jurídicos que eram aplicados conforme o status de cada um dos súditos e o território no qual essa pessoa  se encontrava.  Os guerreiros tinham seu direito feudal que regulava as relações entre o rei e seus vassalos, os camponeses viviam segundo as regras do direito senhorial e os religiosos obedeciam ao direito eclesiástico.  Henrique II vai começar a centralizar e universalizar o direito criando cortes reais  com juízes que eram enviados para as províncias e cujos vereditos se sobrepunham às decisões dos poderes locais. Esses juízes reais se encontravam periodicamente  nas corporações profissionais, nas inns of courts para afinar sua jurisprudência. Assim criaram o direito comum, o common law.

Enquanto isso, na Europa continental, onde também havia essa  colcha de retalhos jurídica, acontecia algo bem diferente.  No Sul da Europa (Espanha, Sul da Itália), seja pela  “Reconquista” ou pelo contato cultural com os árabes, redescobria-se na mão deles, que eram estudiosos em muitas áreas do saber,  transcrições do “Código Justiniano” que foi  criado no século VI numa tentativa do imperador romano Justiniano de unir o Império Romano que já estava em franca decadência. Esse código, por séculos, guardado em mosteiros e também com os árabes que dominavam parte do Sul da Europa,  foi estudado pelos professores de filosofia das primeiras universidades, na Universidade de Bologna e de Paris, no século XII. Logo os advogados se interessaram por estudar nas universidades e conhecer esse código.  Tornava-se uma ferramenta valiosa para ganhar processos (e dinheiro).  Os juristas tornaram-se letrados. Conseguiram enfrentar a colcha de retalhos do direito medieval criando um direito universal e secular que foi gradativamente se basear nas questões filosóficas da liberdade, legalidade, equidade e justiça. Séculos depois,  o estudo do direito romano vai contribuir para a redação, por exemplo,  dos códigos civis da  França, da Alemanha, do Brasil e de outros países que, hoje,  pertencem ao círculo de países que seguem o sistema romano-germânico.   Nos países que seguem o common law o direito romano teve pouca influência.

Chegamos a um parêntese na nossa reflexão sobre a diferença entre o common law e o civil law. Algo lhes é comum: a questão do que é justo.  Justo é viver conforme o desígnio dos deuses? É se adequar à vontade de um Deus? Ou é seguir um sentimento de justiça? A justiça está dentro do conjunto das leis? Ou é um ideal a seguir? Ou, ainda, a justiça só pode ser feita caso a caso?

Durante muito tempo, ser “justo” era obedecer ao desígnio dos deuses e, mais tarde,  à ordem divina corporificada nas leis da Igreja Católica.  Isso ocorreu até o momento no qual acontece no ocidente,  no século XV,  uma revolução filosófica, o humanismo,  que vai preparar o caminho para o direito moderno e contemporâneo. O mundo já não era o mesmo: a Igreja Católica  estava sofrendo críticas por parte dos reformadores, Nicolau Copérnico tinha descoberto que a terra era redonda e os grandes navegadores estavam descobrindo, que além da Europa existiam terras, povos e novas culturas.  Com o humanismo, a justiça, que antes tinha sua base na ideia da justiça divina como medida do bom uso do direito, passa a ser uma questão filosófica e científica. Busca na autonomia da vontade humana sua base. Em outras palavras, o direito natural teocêntrico dá lugar a um direito natural antropocêntrico.  O filósofo Immanuel Kant, homem do século XVIII,  vai resumir o que foi dito em uma frase : “O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim me enchem de respeito, quanto mais penso sobre a vida.”

Resumir o pensamento filosófico de Immanuel Kant em algumas frases não seria fazer justiça a esse homem que influenciou o direito moderno e  continua, de certa maneira,  influenciando o direito contemporâneo.   Essa ressalva feita, vamos ver o que Kant diz sobre o direito e a justiça.  Para Kant, nós seres humanos podemos chegar à felicidade, quando agirmos de uma maneira ética uns com os outros. Ele resume isso no chamado “imperativo categórico”: “Age somente de acordo com uma máxima da qual você pode querer que se torne uma lei universal”.  Por um lado, somos livres e autônomos por sermos humanos (temos a lei moral dentro de nós), por outro lado precisamos conviver com os outros, porque, afinal, estes também são livres e autônomos e têm a lei moral dentro de si. Temos que respeitar, nas  palavras de Kant,  a humanidade dos outros, sua dignidade.  Esse respeito tem valor universal. Precisamos respeitar as próprias leis e as leis de outros povos desde que estes estejam baseados na liberdade e na autonomia. Para Kant devemos, portanto, ser cosmopolitas. Por isso, Immanuel Kant é considerado o mentor intelectual da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Com isso estamos de volta ao common law e ao civil law, agora na contemporaneidade. Os estudiosos do direito comparado constatam que há, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, uma aproximação dessas duas famílias jurídicas.   O direito baseia-se hoje, cada vez mais, nas decisões dos juízes, embora haja a necessidade de criar leis para garantir uma certa “segurança jurídica”.

O common law não prescinde das leis criadas pelo poder legislativo do Estado onde é praticado.  A ciência jurídica nesses países, há tempos, procura organizar a jurisprudência existente encontrando algoritmos ou denominadores comuns entre as decisões capazes de revelarem certas regras universais que orientam novas decisões. Não raras vezes, as regras encontradas formam a base para as decisões no poder legislativo. Exemplo disso é o caso da responsabilidade objetiva ou strict liability no direito norte-americano, uma criação da jurisprudência que influenciou a criação de leis em vários estados membros norte-americanos. 

Por outro lado, em países europeus continentais, tal como na Alemanha e na Itália, há, hoje, uma crescente influência da jurisdição sobre os legisladores.  Em muitos casos forma-se primeiro a jurisprudência sobre um determinado problema,  para depois haver uma legislação que respeite a jurisprudência. Exemplo é a Lei sobre Condições Gerais de Negócios criada a partir de decisões de tribunais alemães compiladas durante décadas.

Qual dos sistemas jurídicos leva vantagem hoje, numa época marcada pela globalização e pela percepção dos limites do direito diante da complexidade da vida numa sociedade organizada em rede, na qual a questão do território a partir do qual pensar e agir é secundária? Aparentemente, o direito baseado na jurisprudência se revela como sendo mais ágil, já que atua no caso a caso e está mais próximo ao cotidiano e suas contingências. Por outro lado, a globalização demanda um agir político e jurídico  comum, demanda a cidadania do mundo, para que possamos enfrentar  problemas globais, a começar pela pandemia provocada pelo COVID 19.

Quando as normas não dão mais conta de direcionar certas decisões, quando as contingências demandam soluções inusitadas, a criatividade “sem standards, mas com princípios” pode valer para psicanalistas e para quem  exerce o ofício de julgar. Isso exige para juízes e psicanalistas, além daquilo que Jacques Lacan chama de “savoir-y-faire”, a responsabilidade de arcar com as consequências de seus atos que só vão se revelar no futuro. 

Agradeço aos seguintes autores pelas informações fundamentais para a compreensão das questões apresentadas e recomendo a leitura de:

Eduardo BITTAR e Guilherme ASSIS de ALMEIDA que numa linguagem inteligível ensinam em seu “Curso de filosofia do direito” as bases do pensamento jurídico kantiano no capítulo 16;

Jacques LACAN,  a quem devemos a aula sobre “A direção do tratamento e o princípio de seu poder” disponível em seus ESCRITOS.

Jorge FORBES, de  quem se aprende a “Psicanálise do homem desbussolado: as reações ao futuro e seu tratamento”,  disponível em sua página:  http://www.jorgeforbes.com.br/index.php?id=115

José Reinaldo LIMA LOPES quem ensina detalhes sobre o direito medieval, o nascimento do common law e a redescoberta do direito romano nas universidades continentais em sua obra “O direito na história” nos capítulos 3 e 5;

Luc FERRY quem em seu livro “La révolution de l’amour”  no capítulo II Morale no sub-capítulo III dedicado à questão “L´ethique républicaine” traz explicações compreensíveis sobre a revolução do humanismo.