Por Carla Trucolo Trindade
Os surdos tem uma língua? Existe uma gramática para os sinais?
Em dezembro de 2013, o mundo parou para homenagear Nelson Mandela, líder sul-africano, símbolo da luta contra o Apartheid. O que ninguém esperava era que, em meio à comoção internacional pelo falecimento dessa importante figura, um intérprete de língua de sinais ganhasse espaço nos principais jornais e revistas do mundo. Tudo aconteceu porque, segundo a Federação de Surdos da África do Sul: “Ele estava basicamente gesticulando. Ele não seguiu nenhuma das regras de gramática e de estrutura da língua. Ele simplesmente inventou os seus sinais” (Folha de S. Paulo, 11/12/2013).
Esse assunto indignou surdos pelo mundo inteiro e rendeu inúmeros comentários em sites de notícias, fóruns na internet e diversas postagens nas redes sociais. Em nosso país, afetou uma comunidade grande. Em seu último censo sobre pessoas com deficiência, o IBGE apontou que, no Brasil, há cerca de 9,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva, sendo que 2 milhões dessas se declararam surdas, ou seja, possuem perda auditiva severa e se comunicam por meio da Língua Brasileira de Sinais, a LIBRAS, reconhecida pela Lei nº 10.436 de 22 de abril de 2002.
O referencial da língua portuguesa é oral auditivo, razão pela qual aprendemos muitas coisas “de ouvido” e nos esforçamos para preencher as lacunas. O mesmo não ocorre com o surdo. Ele depende do trabalho sério do intérprete, bem como de profissionais que tenham a coragem de encarar o desafio de ensinar a língua portuguesa para alunos que possuem experiências linguísticas absolutamente diferentes das do professor. Só consegue sustentar esse lugar quem o vê como uma oportunidade para questionar aspectos da língua e reinventar modos de ensinar. Como os surdos tendem a ser literais na interpretação das peças de linguagem, a parceria estabelecida entre professor e alunos é fundamental para a conquista dos usos conotativos da linguagem, como é o caso da metáfora.
É preciso que o professor apresente ao aluno surdo a língua portuguesa em suas mais diversas formas, que questione as estruturas junto com o aluno, monte e desmonte palavras, transforme imagens em textos, textos em apresentações artísticas, apresentações artísticas em aulas de gramática, aulas de gramática em filmes, enfim…
Paralelamente, enquanto ele ainda não aprendeu, é preciso maior cuidado com relação aos intérpretes. Afirmar que Thamsanqa Jantjie teve uma crise esquizofrênica no meio da cerimônia (como o The Guardian de 20/12/2013) até explica, mas não justifica. Enquanto ele enlouquecia, onde estavam os demais? Por que não havia um substituto de plantão em uma cerimônia de tamanha magnitude?
Se, por um lado, os organizadores da homenagem a Mandela desrespeitaram a comunidade surda de modo injustificável, por outro, o incidente deu voz aos milhões de falantes das línguas de sinais pelo mundo e levantou importantes questionamentos, afinal: Então os surdos têm uma língua? Não se trata apenas de um aglomerado de gestos? Existe uma gramática para os sinais? Quê?! Ao que parece, o famoso “respeito à diferença” está apenas começando.
Carla Trucolo Trindade é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, no momento, está cursando mestrado. É professora de Língua Portuguesa para surdos no Instituto da Oportunidade Social – IOS.