Por Italo Venturelli
Nada parece ser comigo. Transporto-me para outro lugar, para não ter que me responsabilizar por nada. Pode acabar o mundo que não me importo
Pra que mentir fingir que perdoou;
tentar ficar amigos sem rancor.
A emoção acabou,
que coincidência é o amor,
a nossa música nunca mais tocou
(Cazuza)
Maria Antonieta, 22 anos, morena jambo, cabelos negros, lisos, olhos grandes castanhos, da cor dos mouros, muito magra, olhar triste, grandes olheiras, calça jeans, chorosa, melancólica. Adentra a sala de consulta com seu marido. Ele conta que Maria estava entristecida desde que começou a trabalhar como secretária em uma empresa de cosméticos. “Eu mesmo consegui este trabalho com um grande amigo meu, que é o dono”. A paciente havia estado em consulta com um psiquiatra que lhe receitou haldol, fluoxetina, clonazepan, venlafaxina e sulpirida.
Enquanto ele falava, Maria fitou-me nos olhos e eu pensei: boi na linha. Com muito jeito e educação consegui que o marido saísse da sala. Rapaz educado; acho que entendeu como funcionaria a consulta.
Maria retira do sutiã um verdadeiro testamento: três folhas escritas a lápis, sem nenhuma pontuação e com todas as linhas preenchidas. Pede para que jamais mostre aquelas bobagens para o marido. Escreveu como se estivesse falando. – Vou ler, mas quero lhe ouvir, me conte com suas palavras, solicitei.
Doutor, eu comecei a passar mal quando soube da morte do cantor Cristiano Araújo. Eu estava deitada na cama e quando soube, meu coração começou a disparar. Tive dor de cabeça, calafrio, dor no peito, e vomitei. Eu não podia acreditar, pois estava ouvindo as músicas dele naquele instante. Fiquei chorando ali por muito tempo. Parecia que uma pessoa da minha família havia morrido.
– Bem, ao que parece, você gostava mesmo deste cantor, tinha muitos CDs dele? Perguntei. Na verdade não; eu gostava é de ouvi-lo em algumas situações.
– Tipo? Indaguei.
Doutor, vou logo ao assunto! Eu estava na cama com meu patrão, quando soube da morte e ele também ficou chorando. A gente transava ouvindo aquelas músicas. Daí agora quando saio com ele, parece que sem as músicas o tesão acabou. Achei que ele estava apaixonado por mim…
– Ele quem? Perguntei. Meu patrão! – Mas você chora pelo cantor? Questionei. Sim, mas é que penso nos momentos que tivemos.
– Tivemos quem?
Ela não respondeu. Alheia, ficou parada olhando para o celular, como que aguardando um chamado ou uma mensagem. Lembrei-me da música do Cazuza e cortei o silêncio: “…ela sonhava acordada, um jeito de não sentir dor, prendia o choro e aguava o bom do amor.”
– Arrisquei: “A nossa música nunca mais tocou, a emoção acabou, que coincidência é o amor.”
Boa doutor, parece mesmo coisa de filme, só que agora quando percebo que vou sofrer, eu me ausento, parece que não estou, onde estou.
– Sai de cena? Perguntei.
Parece que nunca estou em lugar nenhum. Fico no celular postando fotos, vendo notícias de amigos que mal conheço. Preciso ter uma TV ligada, um rádio, uma tela de celular, qualquer coisa, para que eu não pense em nada, nem nas minhas dores. Acho que sempre fui assim, desligada. Nem sei por que me casei. Acho que foi só para sair de casa. Estou triste, pois não posso olhar pro meu marido que sinto culpa. Fico parada em casa, não quero sair, não tenho memória, esqueço tudo. Eu era ótima em matemática, tinha boa memória, jogava no computador, ficava no caixa do supermercado de meus pais. Agora não consigo nem fazer contas, não estou nem aqui com nada.
– Não estou nem aqui, você disse?
Nada parece ser comigo. Transporto-me para outro lugar, para não ter que me responsabilizar por nada. Pode acabar o mundo que não me importo.
Era a última consulta do dia, coloquei a música do Cazuza para tocar. Ela chorou um tempão e foi falando, falando. Confesso, mesmo com meus 40 anos de médico e anos de análise, engasguei.
Marquei uma sessão pra mim. Eta trem doido esse inconsciente. Haja coração. Prendi o choro e aguei o bom amor.
Maria está sendo atendida há três meses. Consegui retirar a maioria das medicações. Usa apenas venlafaxina 75, uma vez ao dia. Não falta nas sessões. Por vezes já sorri. Atualmente, nos atendimentos dela, notam-se efeitos terapêuticos, que vão desde a mudança na sua aparência, seu modo de se relacionar com as pessoas e, principalmente, a retomada da sua vida profissional, em outro local de trabalho. A melhora do seu humor e a tomada de iniciativa são sinais clínicos importantes. A surpresa, o humor e a responsabilização por suas escolhas, são elementos presentes nas sessões.
No percurso de uma análise um dia você se depara com você mesmo. É preciso trabalho para suportar esse encontro, sem a necessidade de uma “bengala”. Em algumas sessões foi preciso cortar sem anestesia e com bisturi lâmina fria. A clínica do ato precisa ser praticada com cuidado e consequência, ela não é inócua.
A análise é exigente. Estar em um processo analítico e não contando amenidades para o psicanalista, sustentando a presença com o corpo numa nova posição, circulando entre passado e futuro, construindo o presente, com suas nuances, suas surpresas, seus versos e reversos, é o convite que fiz a Maria. Ela diz, sim.
Italo Ventureli é neurocirurgião e psicanalista. Diretor-técnico do Hospital Bom Pastor em Varginha – MG.
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