Por Claudia Riolfi
Aceitamos o desafio de Mayana Zatz: responder se existe gene da chatice. Após uma dúzia de análises, concluímos que a correlação entre um modo de se relacionar e o corpo biológico é falsa
Desde que Sigmund Freud e seus seguidores começaram a fazer a gentileza de publicar o andamento de análises, o tema da chatice faz parte da casuística da psicanálise. Após ler alguns relatos, dá para perceber que, em cada uma das estruturas clínicas, existe um modo preferencial de transformação do sofrimento psíquico em um modo de se relacionar que, aos olhos dos outros, parece insuportável.
É comum, por exemplo, que as histéricas sejam acusadas por seus parceiros de sempre ficar insistindo que algo ainda está faltando, os obsessivos de querer convencer a todos que nunca está faltando coisa alguma e assim sucessivamente. Então, quando Mayana Zatz, diretora do Centro do Genoma Humano, lançou certo desafio aos psicanalistas da Clínica de Psicanálise lá fundada em agosto de 2006 por Jorge Forbes, a princípio, nem estranhamos a temática: Mayana convocou os psicanalistas para refletir a respeito da chatice.
A geneticista estava intrigada com a Distrofia miotônica de Steinert – DMS, a mais comum entre todas as distrofias musculares dos adultos. Apoiada em experiência de quem preside um Serviço de Aconselhamento Genético que já atendeu mais de 50.000 famílias desde 1968, a Dra. Zatz havia notado algo muito estranho: embora as manifestações clínicas desta distrofia fossem muito variáveis, algo não variava: na avaliação de quem trabalha mais diretamente com estes pacientes, a DMS faz, no mínimo, 40% de pacientes muito chatos. Mayana havia notado que profissionais e familiares repetiam a mesma descrição dos portadores do DMS: repetitivos, detalhistas, briguentos, reclamões, pegajosos e queixosos. Oh, my! Se a psicanálise não acredita na correlação biunívoca entre o genótipo e o fenótipo, como explicar isso?
Causada por um gene defeituoso autossômico dominante, que atinge igualmente homens e mulheres, a DMS liga-se a uma mutação genética que produz um fragmento de DNA de tamanho aumentado, em uma região do cromossomo 19. De acordo com ela, como a expressividade do gene é muito variável, há grande variabilidade de quadros clínicos entre os indivíduos afetados. Para termos melhor ideia do quadro clínico, destaquemos três de suas formas: 1) Forma leve: início por volta dos 50 anos, caracterizada por catarata e calvície frontal, com pouca manifestação muscular; 2) Forma clássica: início na adolescência, caracterizada por fraqueza muscular, fenômeno miotônico e catarata. Pode ocorrer queda de pálpebras, calvície precoce, dificuldade para falar e engolir, sonolência, alterações hormonais e cardíacas; e 3) Forma congênita: início ao nascimento, caracterizada por hipotonia muscular, pés tortos, retardo de desenvolvimento e problemas respiratórios e alimentares.
O que teriam estes traços a ver com a percepção de chatice por parte de quem convive com estes pacientes? O desafio de Mayana passou a me torturar! Entendi que, para matar a charada, seria necessário fazer três coisas: a) descrever a especificidade do modo do portador de DMS se comportar, de modo a gerar o julgamento de chato; b) acompanhar os casos atendidos por mim e por meus colegas para ver se ao menos um deixaria de ser chato após a análise; e c) em caso afirmativo, formalizar as intervenções de sucesso contra o congelamento da expressão da chatice.
Tenho persistido nestes objetivos desde agosto de 2006. Desde então, tivemos a oportunidade de levar a cabo o tratamento de doze portadores de DMS. Curiosamente, Mayana tinha razão: a maioria coloca tanto problema no agendamento da primeira consulta com a secretária do Centro que sequer consegue comparecer para a entrevista de triagem… Outros, visivelmente sofridos, parecem não querer ser de outro modo, pois, caso mudassem, teriam maior dificuldade em atormentar os demais.
Não havia dúvida: para quem lida diretamente com eles, os DMS, “ser chato” era um traço passível de fazer um coletivo. Assim, a pergunta que se impunha era: este traço estava correlacionado ao seu organismo ou ao seu modo preferencial de obter satisfação? Se fosse a primeira alternativa, a hipótese da psicanálise com a qual estávamos trabalhando estaria toda errada. Se fosse a segunda, deveríamos ser capazes, após esta dúzia de atendimentos, de descrever como, preferencialmente, os portadores de DMS se satisfazem. Por que os portadores de DMS dão, ao seu interlocutor, a impressão de serem muito chatos? Consegui isolar quatro traços, que passo a partilhar com os leitores.
1) Ao falar, dão a impressão de estar fora da dimensão temporal, do anterior-posterior, fundamento do tempo. Ao que parece, para eles não há uma distância em relação ao agora, definido, na “Física” de Aristóteles, como “o anterior-posterior enquanto numerável”. Como não arranjam o tempo em uma ordenação numérica no movimento, parecem não se dar conta da sucessão temporal e, por este motivo, ao longo de uma sessão, voltam incontáveis vezes aos mesmos assuntos, aparentemente, sem qualquer sequência lógica ou associativa.
2) Ao falar a respeito de si próprios, privilegiam os aspectos relacionados estritamente ao corpo biológico, deixando de fora tudo o que remeta ao erotismo, aos prazeres, à alegria de viver. Aparentemente, não se dão conta de que, para que sejam escutados, é necessário interessar o interlocutor. Se tivesse que lhes atribuir um lema, este seria “meu corpo, meu mundo”. Um fragmento de diário, redigido por um dos pacientes a pedido de seu analista, exemplifica esta posição:
“Segunda-feira: Após ter saído do Genoma, fui para casa e fiz almoço. À tarde, tomei café. Por volta das 23h00, fui dormir e custei a pegar no sono, mesmo tomando medicamentos. Obs.: Neste dia, não tomei um segundo banho, só de manhã.
Terça-feira: Me levantei às 12h00 e só tomei café. Como de costume, não liguei o computador e nem TV pela manhã. À tarde, saí e comprei quatro pães e frios. Comi. À noite, liguei a TV e assisti o jornal. Ao término, tomei Rivotril para dormir e, mesmo assim, demorei. Sem banho.”
3) Ao narrar uma história qualquer, têm dificuldade de separar o essencial dos detalhes irrelevantes. Um exemplo refere-se à tentativa de um dos pacientes esclarecer porque estava desempregado há mais de seis meses. Ao fazê-lo, narrou, de modo frio e desapaixonado, um acidente no qual caiu embaixo de uma lixa em movimento e teve parte de sua perna cortada por ela. Quando se esperava que ele fosse precisar o tamanho da lesão, falar do seu susto ou, mesmo, da dor do corte, a frase pronunciada foi: “O senhor precisava ver como ficou a minha calça, toda rasgada. Não deu nem pra aproveitar pra fazer bermuda. Perdi minha roupa”. Eles dão a mesma importância a tudo, ignorando que, nas conversas, deve existir uma hierarquia das coisas importantes. Este paciente criou um anticlímax quando, em vez de falar da perna, falou da calça. Sua história, potencialmente interessantíssima, ficou muito chata.
4) Ao reagir ao interlocutor, demonstram necessidade de explicar tudo nos mínimos detalhes, não conseguindo suportar ambiguidades, duplos sentidos ou a equivocidade da linguagem. Tendem a dar concretude a tudo, tirando as coisas do plano do falado e remetendo-as ao plano do mostrado, mesmo quando o efeito obtido é pornográfico. Um exemplo é o comportamento de um dos pacientes que não entendia porque sua esposa havia passado três dias sem querer ver algo levado para casa por ele, após uma cirurgia nela realizada. Ele disse: “Eu levei pra casa o mioma. Mostrei pra ela e, depois, mandei o meu sogro enterrar. Eu queria mostrar pra minha sogra, mas ela não quis ver. Achei um absurdo”. O desconforto que ele estava causando no outro nunca lhe passou pela cabeça.
Postos estes quatro itens, retomo a pergunta inicial: a chatice dos portadores de DMS está correlacionada ao seu organismo ou ao seu modo preferencial de obter satisfação? Sem dúvida alguma, aos efeitos da incidência da linguagem sobre seu organismo. O que os quatro traços apresentados têm em comum é que, para eles, o eixo metafórico da linguagem não vai bem. Provavelmente, nos 40% de casos onde a chatice se instala, a distrofia incidiu em alguma área do cérebro diretamente responsável pelo funcionamento linguageiro. Missão cumprida, devolvo o desafio aos biólogos e neurologistas.
Para os psicanalistas, desta discussão toda, penso que é mais importante reter o seguinte: ao se encontrar com uma doença grave, a minoria prossegue sua vida em regime normal e trata dela como um detalhe a mais no cotidiano. A maioria, ao contrário, se agarra à doença como se ela fosse tábua de salvação para uma vida sem ponto de amarração. Ao receber um diagnóstico que lhes dá um nome (portador da doença “x”) a pessoa parece quase agradecida pelo fato de ter sido agraciada com uma interpretação que põe fim em suas dúvidas. Agora, com aquele papel na mão, ela sabe o que é.
Para “descobrir” como viver é um pulinho: basta investigar como vivem as demais pessoas que receberam o mesmo bilhete do destino. Ao tirar a consistência de todo e qualquer nome que venha, pronto, do campo do outro, a clínica do real aposta que é possível levar quem vive como os últimos a adotar a posição de quem vive como os primeiros. Não temos vacina para todas as moléstias, mas temos uma sugestão para quem está sofrendo ou ficou tão chato que está fazendo muita gente sofrer: uma coisa é a doença, outra a sua interpretação.
Claudia Riolfi é psicanalista e cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA.