Chamem os responsáveis! 22/02/2013

Por Alain Mouzat

Em meio às enchentes que assolam São Paulo, ganha força uma figura que, desde os tempos públicos, cumpre a função de agregar a revolta popular, e de carregar consigo todas as culpas: o bode expiatório

Lá vêm as chuvas, as enchentes, e as inevitáveis eructações dos apresentadores de televisão conclamando “o povo” a partilhar sua indignação contra…. Contra quem afinal?
Contra uma figura que, desde os tempos bíblicos, cumpre a função de agregar a revolta popular, e de carregar consigo todas as culpas, evitando assim à sociedade a desagregação frente aos infortúnios para os quais não encontra um responsável: o bode expiatório.
A condenação, em outubro de 2012, de um grupo de geofísicos por não terem previsto o terremoto avassalador que destruiu a cidadezinha de L´Aquila, na Itália,  escandalizou o meio científico, e parece ilustrar a evolução da inevitável necessidade de designar um culpado: uma figura do bode expiatório em versão positivista.
O saber científico deveria garantir contra o risco.
Um pouco diferente é a sentença proferida na França em 18 de dezembro, que condena um psiquiatra pelo assassinato cometido por seu paciente, vinte dias após uma consulta. Como o assassino foi declarado inimputável, o filho da vítima pediu, e obteve, a condenação do médico por homicídio culposo.
No caso, o profissional em questão se mantinha, contra a opinião de todos os colegas, favorável à libertação de seu paciente, recusando as evidências e o diagnóstico unânime de periculosidade.  O tribunal viu, na persistência do médico, um erro profissional.
Mas o interessante nesse julgamento foi a necessidade que teve o tribunal de reafirmar que não existe possibilidade de predição segura de periculosidade, nem grau zero de risco, e de se referir a uma lei francesa elaborada para proteger os responsáveis públicos cada vez mais atacados na Justiça. A lei tenta estabelecer o tênue limite entre responsabilidade e culpa, limitando esta ao caso de “violação manifestamente deliberada de uma obrigação específica de prudência ou de segurança”. 
Em São Paulo, há chuvas diariamente, e diariamente “o povo” sofre com as enchentes. E, no entanto todo mundo cumpre com suas obrigações: a defesa civil põe em alerta o Jardim Pantanal, as televisões mandam seus helicópteros filmam o cachorrinho que tenta escapar da correnteza, os animadores conclamam à indignação.  Uma comerciante, com o rodo em punho, bradava: “Nós pagamos os impostos em dia”. Ao que tudo indica, não basta.
Mas sempre se pode esperar que, um dia, os piscinões darão conta das enchentes, que o transporte público funcionará às mil maravilhas, que não haverá mais terremotos… De que se reclamará então? Que a vida é chata, o amor difícil, a família um saco…
Melhor reclamar das enchentes: a enxurrada, ritual lustral, leva consigo as nossas insatisfações.