Casamento homossexual: esquecer a natureza 17/01/2013

Por Jacques-Alain Miller

Chegamos ao ponto. A natureza deixou de ser crível.
É aí que está hoje o patético da fé

A tradição vaticana quer que, logo antes do Natal, o papa responda aos votos da Cúria romana, reunida na sala Clementina. O discurso deste ano, elogiado pelo  L’Osservatore Romano  como “um dos mais importantes  de um  pontificado que não para de surpreender “, denunciava “ o atentado contra a forma autêntica da família, constituída do pai, da mãe e da criança”. O soberano pontífice se dignou a comentar a respeito do “tratado cuidadosamente documentado e profundamente tocante” que o grande rabino de França publicou em outubro do ano passado, com o título “Casamento homossexual, homoparentalidade e adoção: o que se esquece de dizer”.
Essas supremas autoridades espirituais, uma intervindo em nome “da solidariedade que a liga à comunidade internacional de que participa”, a outra,  indo na esteira  de uma preocupação pastoral estendida “ à situação atual da humanidade”, introduzem no debate francês sobre o casamento um ponto fundamental e realmente apaixonante. Seria mesquinho recorrer à laicidade como cera de tampar os ouvidos. Convém examinar o argumento.
 Casar dois homens ou duas mulheres, e não mais somente um homem e uma mulher, é, nos dizem, em uníssono, negar a diferença sexual. Ora, não diz a Bíblia logo no primeiro capítulo do Gênese “ Ele os criou macho e fêmea”? Essa dualidade é ao mesmo tempo dom divino e dado natural. Ela “pertence à essência da criatura humana”, diz o Papa, é constitutiva de “ sua natureza própria”. É “um fato de natureza, penetrado de intenções espirituais”, interpreta o rabino, que considera “ a complementaridade homem-mulher” como “ princípio estruturante, essencial à organização da sociedade, e admitido por uma ampla maioria da população”.
Transparece certa animosidade, veemente no judeu, distanciada no outro. Dá para entender, ao lê-los,  que o projeto de lei socialista perturba o projeto divino, e que ele é ao mesmo tempo blasfemo, contra-natura e anti-social. Gilles Bernheim enxerga nos militantes LGBT o propósito de “ explodir os fundamentos da sociedade”. Joseph Ratzinger estigmatiza a pretensão do homem a “ farsi da se”, de se fazer por si mesmo: negação do criador que é negação da criatura, e que usa da mesma “ manipulação da natureza que hoje lamentamos quando diz respeito ao meio ambiente”. L´Osservatore fala aliás em proteger “ a ecologia humana e familiar”.  Nenhum perdoa a Simone de Beauvoir por ter escrito em 1949 “ Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Essa frente unida judaico-cristã, enraizada na mesma narrativa bíblica, esconde muitas fissuras.  A lei judaica, na origem, fazia do casamento um ato profano, um contrato civil, antes de ele se tornar cerimônia religiosa na época talmúdica.  Encontramos em santo Tomás, entre lex naturalis e  lex divina, uma relação muito mais finamente articulada do que no augustinismo papal. A doutrina luterana dos dois reinos torna difícil, apesar de Karl Barth, de dar à natureza uma tradução em termos de lei positiva. Etc.

Os psicanalistas não estão menos divididos. Muitos deles levam para o discurso religioso a contribuição de um Freud que subscreve ao aforismo de Napoleão: “ A anatomia é o destino”. Quando o Sr. Bernheim evoca “as estruturas psíquicas de base” necessárias para a criança, será a Bíblia que o inspira? Talvez esteja pensando naquele édipo do qual Lacan já previa que serviria um dia a dar fôlego a uma imagem do pai abalada  pelo avanço do capitalismo.

Mas, ao ressaltar a estrutura do drama edípico, apagam-se as personagens e destacam-se as funções. A função do desejo, afim com a transgressão e desafiante toda norma, pois determinado pela lei (segundo São Paulo, “eu não conheci o pecado senão pela lei”). A função do gozo, que só nos apanha na primeira vez por surpresa e arrebatamento, deixando a marca destinada a se repetir. Nada na experiência analítica atesta a existência de qualquer relação de harmonia preestabelecida entre os sexos. Essa relação da linha com a agulha, por certo foi fantasiada em mil formas imaginárias, instituídas e individuais. Mas, afinal, o que o inconsciente grita em altos brados, dizia Lacan, é que a relação sexual não existe.
Chegamos ao ponto. A natureza deixou de ser crível. Desde que se aprendeu a escrevê-la em linguagem matemática, o que ela diz conta cada vez menos, ela se retira, deixa lugar a um real do tipo bóson de Higgs, que se deixa calcular, mas não contemplar. O ideal da justa medida não é mais operatório. Se a ciência carrega a pulsão de morte que habita a humanidade, seremos capazes de acreditar que uma comissão de ética, mesmo inter-religiosa, possa contê-la? É aí que está hoje o patético da fé. Escutemos o poeta, quando ele se chama Paul Claudel: “ Existe outra coisa para dizer às novas gerações, que essa palavra fastidiosa de ‘tradição’”.

(Publicado, originalmente, no jornal Le Point, em 3 de janeiro de 2013)

Tradução de Alain Mouzat

NOTA: Casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil: http://bit.ly/NwCLpL