Quando a Repetição Traz o Novo 10/11/2017

Por Jorge Forbes

Começo por um breve comentário. Recebi ontem a Carta de São Paulo n15 (…), na página 15 pode-se ler uma bela síntese do I Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise, em Curitiba. (…) Viro a página e encontro na rubrica “Galeria”uma foto de um grupo de analistas aplaudindo José Miguel Wisnik, de pé, com esta legenda: “Psicanalistas presentes ao I Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise aplaudem José Miguel Wisnik”. Quem a escreveu não colocou em evidência o que a foto já mostra: analistas aplaudem de pé.

Não é muito comum ver analistas aplaudirem alguém de pé. Muito menos a outro analista. Mas, a José Miguel Wisnik, eles aplaudiram. E, na foto acima: “José Miguel Wisnik dá um show de Interpretação ”jogando com o tema do congresso, a Interpretação, ele é visto ao piano interpretando uma música, A Cajuína.

Acho interessante alguém, ao fazer a síntese de um congresso de psicanálise, dizer que ficou com a música de Caetano Veloso na cabeça, e que isso apareça justamente em uma revista oficial da Seção São Paulo da Escola Brasileira da Psicanálise. Dizem ser mais importante o que fica. No caso, ficou a música. Concordo plenamente com essa avaliação e dela retiro algumas consequências.

José Miguel Wisnik é titular de literatura da USP, compósito, cantor. (…) Ele atravessa fronteiras: pode dar aula de literatura, história da música, pode fazer uma metafísica, um show, como foi dito e pode cantar a própria música. E não só cantou como entusiasmou os analistas pela forma de apresentar, e pelo que apresentou. Mostrou aos analistas o que Caetano Veloso traz nessa canção.

Vemos na letra de A Cajuína, Caetano Veloso se perguntando sobre a base de nossa existência, para que vale existirmos. A resposta é o próprio cantar a existência. Não existe uma resposta na música em si também, ele não é americano… O que existe é a própria música em seu movimento, uma resposta do por que existimos, ao ser cantada, pelo menos, três vezes. 

Os presentes viram a demonstração de José Miguel Wisnik que, ao cantá-la três vezes, se impõe uma série – absolutamente lacaniano. Foi interessante como ele explicitou essa questão, desalmadamente, achando que o auditório poderia ter dificuldades em entender por que o três abre uma série. Ele cantou a música três vezes, mostrando que, ao acompanhar o poeta dizer o porquê de existirmos, a música entra em tensão resolutiva, vem a solução: “A cajuína cristalina em Teresina”. Daí, ele a retoma no começo: “Existirmos, a que será que se destina?”, em um movimento de retorno ao seu próprio início. Única resposta possível a esse movimento: cantar.

Não existe uma resposta racional no sentido do entendimento. Só existe uma resposta necessária: fazer uma ação perante a isso. Em Curitiba, a ação foi cantar. Um auditório de psicanalistas cantou A Cajuína, sem música, à capela, e, por três vezes, retomou-a, no início, em uma demonstração de que algo sempre escapa, e do que escapa faz-se algo de bom. Os analistas cantaram. Não apenas contaram como ficaram felizes, e, no final, aplaudiram, de pé, não só a José Miguel Wisnik, mas a eles próprios, por terem vivido aquele momento, por terem participado daquela plenária diferente.

Foi interessante também acompanhar a demonstração de Wisnik, de como a mesma música poderia ser cantada de uma forma idiota no sentido duro do termo, no sentido que Lacan dá em Televisão. Retomo o termo para lembrar-lhes que o termo “idiota” se refere àqueles que são idênticos, a si mesmos, daí o termo “idiotia”, ou “idiotice”- a repetição do mesmo. É nesse sentido que utilizo.

Cantar essa música, em ritmo de baião, de pé seria uma forma idiota de transformar a generalidade de Caetano Veloso nessa letra e música, banalizando-a. Ou seja, fazê-la virar forró no sentido de uma marcação sincopada, própria do baião.

Alterando-se a tonalidade da música, pode-se ter a repetição do baião, a música sincopada. Quebrando-se essa mímica, onde se esperava a repetição do mesmo, surge uma mudança tonal, a partir da própria palavra “existirmos”, que ele canta subindo. No baião, cantamos “Existirmos, a que será que se destina…” no mesmo tom, ou melhor, mais baixo, faz-se o sincopado do forró.

Chamo a atenção para o que seria uma análise através do exemplo de José Miguel Wisnik porque, em uma análise, não se trata tanto de alterar uma história, mas de cantar a mesma história em outro tom. Em uma intervenção que fiz nessa plenária, comentei que uma pessoa pode cantar a sua história de vida na idiotia de um baião, ou pode se apropriar dela e fazer uma genialidade. Repetir a idiotice ou repetir a novidade. São duas formas de repetição, só que uma é idiota e a outra é criativa.

Trecho do livro “Da Palavra Ao Gesto do Analista” de Jorge Forbes.

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