Por Claudia Riolfi
O assassinato de duas irmãs adolescentes pela própria mãe perturba e provoca reflexões sobre os laços amorosos contemporâneos
A “pracinha Elis Regina”, no Butantã, é um lugar de referência para a comunidade USP: sinônimo de um local bom e tranquilo para se morar. Rodeada de repúblicas de estudantes e sebos que praticam preços camaradas, tem até uma feirinha de artesanato nos finais de semana. Muitos se conhecem e o sistema de trocas é o pão nosso de cada dia. Lá, as pessoas se sentem seguras.
Dia 12 de setembro, nossa Elis desafinou. O conjunto, apavorado, bateu fora do bumbo. Os jornais atravessaram o samba e o barulho está ensurdecedor. Giovanna, de 14 anos e Paola, de 13, foram assassinadas. Quem confessou o crime foi Mary, a mãe das garotas. Os dados apresentados pela investigação não ajudaram os habitantes da pracinha e da vizinhança a recuperar o equilíbrio.
Disseram que a mãe era rigorosa com as filhas. Mães rigorosas matam? Afirmaram, ainda, que ela pregava um papel na geladeira com tarefas das meninas. Em quantas casas encontramos tabelas idênticas? E, em quantas, as meninas acabam mortas? Narraram, por fim, que as filhas relatavam nas redes sociais divergências com a mãe. Ué? Desde quando adolescente reclamando de mãe é novidade?
Passeando pela praça, o que se ouve são vozes revoltadas com Mary. Descobriu-se que ela é trambiqueira. Salientou-se seu sangue frio: no dia seguinte, passeou com o cãozinho das meninas. Assustou-se com o fato de que, aparentemente, ela velou as meninas por dois dias. Ninguém falou do pai de Giovanna e Paola. Onde ele está? Que papel teria tido na tragédia?
Comentando o risco social de pessoas que fazem coisas completamente disparatadas, Jorge Forbes se utilizou da personagem “Medeia” para nomear um tipo de histérica que não para frente a nada. Ele lembrou-se da personagem da tragédia grega que matou os próprios filhos para vingar a traição de Jasão destruindo tudo o que eles tinham em comum.
Assim como Medeia, Mary matou seus filhos. Entretanto, até o presente momento, não se sabe se existe um Jasão para quem seu ato hediondo aponta. Provavelmente, deve ser por este motivo que a fauna da Elis Regina mostra sinais de depressão. Caso, ao menos, pudessem dar uma interpretação plausível para o horror que manchou a praça, talvez permitissem fazer seu luto em paz.
É esse tipo de ocorrência, cada vez mais comum, o motivador do curso “Família para que te quero: uma leitura psicanalítica”, no IPLA. Sob a curadoria de Dorothee Rüdiger, o sábado, 19 de outubro, será dedicado a compreender por que a família, berço do ser humano e da civilização, precisa encontrar novas amarrações para se manter funcionando em uma época em que parece não haver mais certo e errado, dentro e fora da lei. Nossas Giovannas e Paolas nos convocam. Frente à sua perda, ridiculamente absurda, já passou da hora de reinventar os laços amorosos contemporâneos.
Claudia Riolfi é psicanalista, cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA