Brilho e sombras 23/06/2016

Por Dorothee Rüdiger

Apreciamos o belo exposto nas vitrines das lojas e nas páginas da internet e temos compaixão com os que produzem mercadorias em troca de salários de fome 

Elas estão nas vitrines brilhando para seduzir quem passa pela rua Oscar Freire, em São Paulo, pela Bahnhofstrasse, em Zurique, pelo Kurfürstendamm, em Berlim ou em qualquer endereço importante para o mundo fashion. Sonho de consumo, as peças de roupas ali expostas  povoam o imaginário de quem gosta de glamour. E, quem não gosta de glamour?

Volta e meia, o brilho desse mundo da sedução pelas vestes e seus assessórios é ofuscado pela denúncia de seu lado obscuro.  Para sustentar sua beleza, parte do setor da moda recorre a uma indústria  que emprega uma legião de escravos. Costuram em fábricas prisões na China, em galpões, onde moram e trabalham imigrantes clandestinos, no Brasil, em oficinas dominadas pela Máfia italiana, na Calábria  ou  então em Alto Mar nos navios de “bandeiras de conveniência”  a caminho do lojista e do consumidor final em qualquer parte do mundo.

Em São Paulo, o trabalho clandestino  de imigrantes ilegais já caiu reiteradas vezes na malha da Justiça. Mereceu o trabalho de duas comissões parlamentares de inquérito. Em vão. Sendo um fenômeno globalizado do século XXI, “não pode ser combatido com as medidas que pertencem ao século XX”, como afirma um dos fundadores do grupo Reporter Brasil, Leonardo Sakamoto, em sua mais recente TED conference. [1] A Justiça, circunscrita a sua competência material e territorial, não alcança a não ser o pico do iceberg da produção subterrânea mundial.  Se, por um lado, há pactos mundiais e nacionais  entre empresários, trabalhadores, governos e
a Organização Internacional do Trabalho que exigem uma produção industrial transparente com   fair labor practises, por outro, há um sem número de oficinas clandestinas que produzem roupas vendidas nas lojas de departamento, nas boutiques e até nas casas de Haute Couture pelo mundo afora, como denuncia o jornalista Roberto Saviano em seu livro Gomorra.

Brilho e sombras. Como não lembrar do conto The strange case of Dr. Jenkyll and Mister Hyde  que  Robert Louis Stevenson publicou em 1886?  E como não lembrar das pulsões de vida e de morte,  Eros e Tânatos que povoam nosso inconsciente e de cuja existência Sigmund Freud nos dá notícia desde que percebeu em sua clínica os efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial e da agressividade humana? Somos todos  Dr. Jenkyll, cidadãos do bem. Apreciamos o belo exposto nas vitrines das lojas e nas páginas da internet e temos compaixão com os que produzem mercadorias em troca de salários de fome. Mas fazemos pacto com Mr. Hyde, o monstro sem escrúpulos, quando, sabendo das péssimas condições de trabalho no underground da economia  enchendo a sacola de objetos chamados por  Jacques Lacan no Seminário XVII  de Latusas, quinquilharias que se encontram  “na saída para a calçada, em todas as esquinas da rua, atrás de todas as vitrines, que são objetos feitos para causar seu desejo”.

Em um mundo globalizado, no qual as formas tradicionais de regulação social, as normas jurídicas,  encontram cada vez mais dificuldade de saírem do papel dos códigos nacionais e das convenções internacionais, o cinismo aflora. “Não tenho nada a ver com isso” é a defesa mais corriqueira de quem se faz valer das redes de produção para lucrar com a depredação da vida. É a justificativa também de quem consome sem querer saber da procedência do objeto que, diga-se de passagem, não vai ser exatamente o objeto de seu desejo, mesmo porque o desejo não se satisfaz com um objeto.

Podemos tomar atitudes. Com as ferramentas que se encontram  na sociedade globalizada e em rede do século XXI formam-se movimentos sociais . Tornam-se viróticas nas redes sociais e tomam as ruas nos quatro cantos do mundo. Agir nessas redes tornou-se uma práxis política contemporânea  que  denuncia, boicota,  exige qualidade e, quem sabe, pode  acabar com os sweatshops  contemporâneos no Braz e em qualquer lugar do mundo. 

 Dorothee Rüdiger é psicanalista e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo 

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