Brigas de amor 18/09/2014

Por Claudia Riolfi

As transformações que geramos em relação ao modo como o doente se posiciona frente a sua doença fazem toda diferença em relação ao quanto ele sofre

Aos vinte e sete anos, ele nunca tinha tido namorada. Tinha até tentado, mas se decepcionava a cada vez. Ia para cada encontro cheio de expectativas e rolava a vida de decepção em decepção. As mulheres não o compreendiam como ele teria desejado. Perguntado a respeito da matéria-prima para o seu ideal de amor, não vacilou: para ele, o modelo de mulher era sua mãe. Ela, sim, sabia como tratá-lo bem. Não fazia exigências. Não o fazia sentir menor por ter de se locomover em uma cadeira de rodas.

No momento de sua primeira entrevista psicanalítica, estava “enrolado” com uma jovem, mas o relacionamento não ia para frente. Aparentemente, ele fazia tudo direitinho, mas, nem mesmo assim, ela se sentia satisfeita. Por esse motivo, o moço se sentia como se fosse um joguete nas mãos daquela a quem cobiçava. Bom seria se, ao se dirigir a ele, ela agisse como sua mãe fazia. Aí sim ele poderia ser feliz.

Aos vinte e sete, apresentava uma visão de mundo de quem tinha mais ou menos dois, três anos de idade. Curiosamente, não apresentava um rebaixamento mental que levasse os psicanalistas a suspeitar da presença de uma patologia cognitiva. Era um pouco desencontrado no tempo, mas, excluindo-se isso, normal. Como ler esse caso?

O depoimento desse paciente fez lembrar um texto escrito por Jacques Lacan em 1969: Duas notas sobre Criança. Entregues, manuscritas, para a sua colega Jenny Aubry, as ponderações de Lacan contrapunham duas posições que podem ser ocupadas por uma criança que sofre.

Entendendo que os sintomas são sempre o representante da verdade inconsciente, Lacan diferenciou os seguintes lugares. O primeiro é o da criança cujo sintoma representa a verdade de seus pais. Embora esse caso seja complexo, pondera Lacan, é, também, o mais aberto para as intervenções da psicanálise.

O segundo é o da criança cujo sintoma dominante diz respeito à subjetividade da mãe. Nesse caso, ela fica fragilizada, por estar sem defesa frente ao desejo de sua mãe. Tornando-se seu objeto, a criança toma como sua a missão de revelar a verdade do objeto que causa o desejo dela, suturando, com sua existência, sua falta.

Contrapondo a história do paciente com o texto de Lacan, podemos ver que, mesmo, cronologicamente, já tendo uma idade de adulto jovem, psiquicamente permanecia sendo o que Lacan teria chamado de “a coisa de sua mãe”. Por esse motivo, ao sintoma físico (concreto), ele agregava uma posição subjetiva que o tornava culpado do fracasso amoroso de sua mãe; uma atração irresistível, que tinha feito com que ele tivesse se tornado um especialista a respeito de seu mal; a encarnação de uma “recusa primordial”, nas palavras de Lacan.

Quanto aos pacientes atendidos na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano, há quem pense que nós, psicanalistas, pouco podemos fazer com relação ao sofrimento físico deles. Mas, evidentemente, as transformações que geramos em relação ao modo como o doente se posiciona frente a sua doença fazem toda diferença em relação ao quanto ele sofre. Então, em regime de urgência, fazia-se imperativo deslocá-lo do lugar de quem se aferra ao sintoma físico para manter, intacta, a castração de sua mãe. Assim foi feito. Em tom de quem constata uma verdade da vida, Jorge Forbes disse-lhe: – A diferença do amor de mãe e do amor de uma mulher é que, com uma mãe, você pode fazer de tudo que ela nunca briga com você. Já, com a mulher, não importa o que você fizer. Ela vai brigar com você o tempo todo.

O jovem riu. E, ainda sorrindo, aceitou a oferta de uma psicanálise.

Claudia Riolfi é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo. Cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Psicanalista, é Diretora Geral do IPLA.