Breve espaço e solvitur ambulando 14/09/2018

Por Camilo E. Ramírez

Caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar
Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Antonio Machado

Em seu texto Sobre a transitoriedade (1916 [1915]) Sigmund Freud dialoga com um jovem poeta enquanto caminham pela montanha; ele tinha pedido análise a Freud, mas nesse tempo o pai da psicanálise não tinha tempo em Viena, então resolveu a questão fazendo a análise em suas férias, em passeios pela manhã.

Ao contemplar a beleza das obras da natureza, o poeta denuncia ao mesmo tempo a grandeza e a fragilidade da natureza, desejando que fosse de outra forma. Freud comenta:

O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção […] Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade (Freud, 1916 [1915])[1]

Freud argumenta que a transitoriedade em nada diminui o mais sublime da natureza, ao contrário, a amplifica. Mas, a dificuldade do poeta fez Freud se perguntar: Por que o poeta não pode desfrutar daquilo que ainda está vivo diante dele?

O jovem poeta nos faz lembrar um mecanismo muito usado: uma pessoa que toma consciência da sua condição humana (ser consciente da própria morte, do tempo de vida, de sua finitude necessária). E para proteger-se disso, ele renuncia ao momento presente, atirando-se a certo ponto futuro em que acreditaria mais seguro, achando que fazendo isso (aumento da consciência pessimista-realista) se tornaria imune ao sofrimento das peripécias e labirintos da vida, ao risco.

Não é isso a mesma coisa que está envolvida em toda vida humana? A questão da vida não é somente habitar um espaço que não se reduza a um tempo, como experimentam os animais, mas, precisamente a uma vida significativa, consciente e participativa, e não em piloto automático, cheia ou de muito passado ou de uma invasão angustiante do futuro. E que não é ruim por ser breve. Se nós amamos aquilo que já está marcado com a morte (Quem me ungiu a morte nas plantas de meus pés no dia de meu nascimento?[2]– diz o poeta mexicano Jaime Sabines) então amemos sem garantias, sem esforços do controle, incluindo o que não é calculado.

A ilusão de pensar que, se fosse possível nomear perfeitamente a priori aquilo que produz medo, isso traria mais segurança, é precisamente efeito da noção de regulação da vida, presente em muitos âmbitos (política, família, escola, empresa, amor, etc).  É crer que tudo na vida pode ser operacionalizado (reduzido a uma variável a ser medida) como se fosse uma linha de produção industrial, onde tudo deve ser planejado, predeterminado. Sendo assim, as surpresas e os riscos seriam calculados e reduzidos à sua mínima expressão para garantir a qualidade do produto, para depois, paradoxalmente, perguntar-se: Onde ficará a criatividade? Onde está o desejo? E ao final te propomos um curso de criatividade e, cúmulo dos cúmulos, te ordenamos: Seja espontâneo!

Ao viver achando que tudo na vida pode ser nomeado, que isso poderia ter algum efeito protetor, se faz como alguém que vai com medo a uma festa: fica trêmulo, só olhando e criticando os demais, por acha-los ridículos, sem participar da joia do encontro, Ele não participa, não se implica: “Nossa, do que me salvei! Salvei-me de fazer o ridículo!

Como os humus/humanos (Lacan, 1967)[3] podemos nomear a própria morte, corremos o risco de atraí-la, precipitá-la.  “…quem sabe finalmente o nome da morte corre o risco de chama-la e ela escutar” (Forbes, 2012)[4]

Essa mesma fragilidade e finitude, faz com que possamos nomear coisas, mas ao mesmo tempo desconhecendo muitas: amamos isso que se gera no encontro, no acaso, mas paradoxalmente, desejamos que se repita uma e outra vez, sabendo ou não, que essa pretensão burocrática-amorosa  pode amputar o amor, fazer que se atente contra ele. O amor é, sobretudo, encontro, liberdade e criatividade. Como pode então permanecer se estiver sujeito a fórmulas de controle e vigilância?

O real do momento que sustenta a vida, sem lógica, sem nenhuma lei, pode inquietar ao grau da gente renunciar ao seu movimento, querendo traduzi-lo ao imperativo da rotina e do protocolo. Todo bom nadador de águas abertas sabe que em caso de seu corpo seguir uma estratégia fixa, quadrada, forçada, vai ficar pesado, torpe; ao contrário, se ele quer nadar no mar, seu corpo deve tomar levemente o ritmo das correntes, deixar a onda o levar.

Já que a experiência do mar, como a vida, é a experiência da liberdade e do singular: não importa quantas vezes seja observado, cada detalhe, cada dobra é única e irrepetível. O horizonte se expande e não há um único ponto de apoio, de referência, mas muitos. A “onda” leva, guia, ensina e orienta, mas também pode angustiar, (como falou Nietzsche,[5]se a pessoa sente saudade da terra diante do peso da liberdade, que sempre será maior que do sacrifício e da submissão). E pode também ser mais divertida e criativa, pois ela demanda um movimento inédito para cada um de nós.[6] O ponto de menor padronização -fora da “caixa”- é o ponto de maior amplificação.

Essa invenção em Freud de fazer análise andando pelo campo, pela cidade, ter seus amados cachorros no consultório durante as sessões, não só é coisa esquisita de gênio.[7] A meu ver, uma posição diante da vida marcada pela consequência do tempo, da transitoriedade, respondendo ao inusitado com um ato criativo, diferente do poeta queixando-se pela curta duração da natureza. Como falou com humor, mas com clareza, a um outro paciente que queria pagar-lhe por adiantado algumas sessões: Se eu morrer, você vai pedir à minha família seu dinheiro de volta.

Camilo E. Ramírez é psicanalista no México. Professor na Faculdade de Psicologia da Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL) e consultor em Escolas e Empresas. contacto@camiloramirez.com.mx

 


[1]Freud, Sigmund(1916 [1915]) Sobre transitoriedade In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v. XIV.Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 186.
[2]
Sabines, Jaime (1972) Poema de Doña Luz XXI. In. Antología poética. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.
[3]
Lacan, Jaques (1967) Otros escritos. Buenos Aires: Paidós, 2012.
[4]
Forbes, Jorge (2012) Café Filosófico: Velhice, par que ter quero? Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=B3IORTf-N_kAcesso setembro 2017.
[5]
Nietzsche, Frederich (1888) A Gaia Ciência
[6]
Cf. Forbes, Jorge. Você sofre para não sofrer: Desautorizando o sofrimento pret a porte Baueri: Manole, 2014.
[7]Cf. Roazen, Paul Cómo trabajaba Freud. Comentarios directos de sus pacientes. Ediciones Paidos Ibérica, S.A. Buenos Aires, 1998.

 

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