Por Dorothee Rüdiger
Gostamos de consumir o que a sociedade pós-moderna nos oferece e gastamos água, muita água com isso
Lá se foi o carnaval. Ressoam ainda suas marchinhas. Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô / Mas que calor ô ô ô ô ô ô! O aquecimento global chegou com temperaturas de fazer derreter o asfalto. Haja ventiladores, haja ar condicionado, haja refresco! Água, água, água, água, água mineral! Salve quem nos forneça o líquido em galões, garrafas e copos, de preferência on the rocks, com bastante gelo. Em compensação, essa pessoa está fazendo o negócio do século. E dizem as boas e as más línguas que as gigantes da indústria alimentar estão de olho e até andam comprando as fontes de água potável pelo mundo afora, uma a uma. São sinais dos tempos, nos quais o que hoje é desperdiçado, amanhã será impagável. As águas vão rolar para quem botar a mão no bolso.
Ao menos é essa a projeção dada pela imprensa que está começando a expor as contas d´água da sociedade brasileira e a denunciar a gastança desmedida desse líquido, fonte da vida. A maior parte da água entra e sai pelo cano sem uso. Volume vivo ou morto, na Grande São Paulo, mais de um terço da água potável captada vaza por canos furados. É a sede de lucro dos acionistas da companhia de água e esgotos enxugando nossas torneiras, denunciam uns. É a falta de investimentos em infraestrutura por parte do poder público, reclamam outros. Água é business. Se continuar faltando, os plantadores de tomates e alfaces, ao invés de abrirem as torneiras para a irrigação vão ter que rezar novena para que chova em suas hortas. E se as empresas no setor agrário que plantam e colhem cana, soja, algodão e outras commodities não realizarem investimentos em sistemas de irrigação mais inteligentes, vão ter que gastar muita vela para pedir a São Pedro para abrir as torneiras celestes. Porque água vai faltar. Ou você pensa que cachaça é água?
Mas, quem nunca tomou refrigerante, que jogue a primeira pedra. Não só o que comemos e bebemos gasta água em seu processo de produção, toda produção industrial precisa de água. Gostamos de nossos carros, das nossas roupas, de nossos cosméticos. Achamos indispensáveis computadores e telefones celulares. Gostamos de consumir o que a sociedade pós-moderna nos oferece e gastamos água, muita água com isso.
Somos seres humanos e como tais não escapamos da civilização em lugar algum desse planeta, chamado de “planeta azul”. Viver na civilização nos faz humanos. Nela procuramos o que nos falta, por uma questão de necessidade, por uma questão de sobrevivência. Água para beber. Para tomar banho, para lavar roupa.
No entanto, Bebida é água, comida é pasto. Você tem sede de quê? A gente não quer só bebida. Queremos mais. Como humanos somos insatisfeitos com nossa civilização. Queremos encontrar sabe-se lá o quê. Queremos “pegar o passarinho jogando sal em sua cauda”, Lacan dixit. Gozamos procurando utilidades e inutilidades para matar a fome, a sede e algo mais. E gastamos além da conta.
Quem faz psicanálise percebe que, ao contrário do que se promete, não está na prateleira do supermercado, não se compra em shopping centers, não demanda um rio de dinheiro ou a última fonte de água potável. É algo que está fora da civilização. Não precisa desperdiçar nada. Mas, demanda criatividade, demanda abertura afetiva. Criatividade que um agricultor pode mostrar, quando encontra uma técnica de irrigar a horta com conta-gotas. Abertura afetiva que cada um de nós pode ter para deixar para os filhos e os netos algo das riquezas naturais, cujo destino está, hoje, em nossas mãos. É a promessa de vida no teu coração, da qual nos canta Tom Jobim na voz de Elis Regina. Depois do carnaval, bem-vindas, então, as águas de março!
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo