Atrás do espelho 31/03/2016

Por Dorothee Rüdiger

Sentimentos são mentiras que construímos para nos enganar diante do óbvio: que o poder é uma ilusão, um tapa-buraco daquilo que reluta em não fazer sentido, o real

Quando acreditamos ter encontrado a alma gêmea, sentimo-nos confortados. Fim da viagem, da busca, da procura. A alma do outro é como se fosse nosso espelho, daí o nome: alma gêmea. O fim da viagem, porém, transfigura-se no início da tragédia, na paixão, no sentido literal da palavra, do submeter-se, sujeitar-se ao sofrimento. A pessoa amada torna-se o espelho, no qual enxergamos nós mesmos incompletos e transfigurados . Diante do espelho, inexiste encontro. Existe somente imagem. Não há abraço. Há tão-só gélido reflexo. Enxergar atrás do espelho, experimentar o outro  como real (se é que isso seja possível) não se configura nada confortante. A descoberta do ser que se revela quando a pessoa idolatrada está sem a máscara do reflexo, implica um choque e um desafio.

Podemos levar o espelho para a esfera do poder. Brasília (nome que já é uma espécie de representação do Brasil) é um espelho em que o povo se mira apaixonado em todos os sentidos.  Não é à toa que há um espelho d´água circundando o Palácio do Planalto onde refletem as imagens dos que representam o povo.  O  poder  provoca paixões: ódio ou amor,  versões do mesmo sentimento.  “O sentimento mente”, apreendendo com Lacan. Sentimentos são mentiras que construímos para nos enganar diante do óbvio: que o poder é uma ilusão, um tapa-buraco daquilo que reluta em não fazer sentido, o real.   Se a paixão amorosa é reflexo, imagem projetada de nós mesmos, do modo  como gostaríamos de nos ver refletidos no outro, a paixão política também não foge  do fato de ser uma representação especular.

Quando o espelho trinca sob o peso das investigações parlamen­tares e policiais, e desvela-se a corrupção –  significante de um processo contínuo de rompimento de algo que se acreditava in­tacto, intocado (por que não “virgem”?) –, nos desesperamos. Pois nossa própria imagem começa a trincar. Acordamos do sonho da possibilidade de  delegar à esfera do poder público a questão da ética. Somos lembrados que somos cidadãos exigidos politicamente, dia-após-dia, de forma singular a repensar nossas convicções e atitudes. “Ética”!, gritamos, para logo cairmos no pranto da paixão impossível, não correspondida por partido político que possa se salvar como incólume diante das investigações da polícia federal. Salvo honrosas exceções, aí, no gran­de espelho chamado poder, não havia nada, só a fria imagem de nós mesmos idealizados. Nada mais resta,  nem sequer o faz de conta do jogo político, agora desvendado como corrompido.

Nós, a sociedade, o povo, os cidadãos,  acabamos de engolir à força a pílula amarga que nos leva ao “deserto do real” do que diz o filme Matrix. Percebemos que o poder popular  está corroído pelo capitalismo global, pela rede de tráfico de influências, na qual  os representantes  de nossos anseios por uma “sociedade  fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social  justa”, como reza a Constituição Federal,   estão presos como peixes lutando contra a morte por asfixia.

Para os enamorados que caem na real, não há outra saída a não ser aceitar que o ser amado não se confunde com sua imagem refletida como alma gêmea. Salvar a máscara? Impossível! Deixar de amar? Fundo do poço! Reinventar o amor… Como? Quem se enxerga na  imagem corrompida do espelho rachado  descobre, que  o  real tem também seu lado libertador. Desnudados de nossas identificações  temos  a chance de tomar   atitudes diante da crueza  do real. Diante da falta de ideologias, normas e  princípios que norteiam nossas ações podemos reinventar a ética,  reencontrar uma causa, e, por que não,  reinventar a política. Um apaixonado desiludido vai ser livre para inventar um amor. Esse amor inventado, na política, é a amizade entre pessoas com opiniões diferentes. Vamos precisar dela. Frente ao futuro e seus desafios, a amizade que, no momento de crise,  exige uma capacidade incomum  de ouvir a angústia do outro, fará toda diferença.  

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

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