Por Alain Mouzat
Uma análise leva alguém a perder suas identidades e a se confrontar com a sua liberdade pela qual terá que se responsabilizar
Hoje, depois de dois anos de sessões semanais, Apolônio pediu dispensa, alegando que está bem, quer vir de quinze em quinze dias. Devo concordar? Ele já está suficientemente bem?
A questão nem sempre se coloca dessa forma. Ela pode também ser formulada como: o que é fim de análise? Freud discutia sobre análise com fim e sem fim – “endliche und unendliche”. Cada caso é um caso responderia sabiamente o Sr. Dr. Na verdade não atendemos casos, atendemos pacientes, pessoas que têm, todas, suas dificuldades, que só não nos remetem às nossas porque já passamos por uma análise. Mas a análise nos vacinou contra qualquer perigo? Ainda bem que não. Porque viver é muito perigoso.
Aliás, quem pode falar de quanto a vida é perigosa, é Apolônio. E tudo começou, diz ele, voltando do hospital onde tinha deixado sua mulher, quatro anos atrás, com uma carona que ele deu a uma moça que apareceu de repente nos faróis da Kombi, saída de trás de um poste, “de pizza e cerveja na mão”. Ele a deixou em casa. No dia seguinte, indo à padaria, viu um carro preto rondando e, desde então, soube: havia gente que queria matá-lo. Ele não sabe o que essa mulher pode ter contado: “ela deve ter falado que zoei dela, ela é casada com bandido, e eles estão atrás de mim para me matar”.
A “perseguição” que sentiu acabou com a vida dele: não pôde mais sair para trabalhar, vendeu a Kombi e fugiu para o Sul. Não adiantou, a perseguição continuou. Ele voltou, mas não encontrou mais a mulher e os filhos que se mudaram sem deixar endereço.
Acabou reconstruindo algum quadro de vida. Nas reuniões religiosas, encontrou a nova esposa, cadeirante, portadora de distrofia, com quem vive hoje. Ele se prontificou a cuidar dela: dá banho, faz comida, limpa a casa. Mas ele não saía sem ela, e ela estava pagando o preço de aguentar os delírios de perseguição. A situação estava ficando insustentável.
Assim foi ela quem solicitou, há dois anos, uma consulta à Clínica de Psicanálise do Centro de Estudo do Genoma Humano da USP, mas logo indicou a que veio, respondendo à banal questão formulada por Jorge Forbes, que acompanhado pela Doutora Mayana Zatz, sempre realiza a primeira entrevista: “Como posso estar bem, Doutor, com um traste desses empurrando minha cadeira?” Foi assim que Apolônio empreendeu uma análise.
Hoje, depois de dois anos de sessões semanais, Apolônio pediu dispensa, alegando que está muito melhor, quer vir de quinze em quinze dias.
Tenho que concordar, pois não acontece mais chegar acabrunhado, contando sobre as situações constrangedores em que seus delírios o colocavam: suspeitando de todos, espiando, ouvindo conversas de familiares, interpelando homens no banco que com certeza estariam falando dele…. O desfile das pornografias que enxergava nos outros se estancou.
Hoje então, Apolônio veio para um retorno de controle. Ele aparece sério, mas conversador, simpático, mas gaiato, “ sestroso”, dirá o Dr. Jorge Forbes que o recebe acompanhado de Mayana Zatz. Tomando uma medicação muito leve, Apolônio continua com sua certeza íntima de que querem matá-lo. Ele continua saindo com a esposa, porque não tem ninguém que possa cuidar dela, justifica. Mas ele não tem mais medo. Ele não pode ser louco, argumenta, pois cuida de uma cadeirante e de duas pessoas idosas: “Sou cuidador”. Apolônio foi bastante esperto e eficiente para obter a pensão da ex-esposa que faleceu. Ajeitou um espaço de conforto, no qual ele se acha satisfeito. A esposa também dá prova de maior confiança e cumplicidade.
Uma análise leva alguém a perder suas identidades, a se confrontar com a sua liberdade pela qual terá que se responsabilizar. Ora, Apolônio não se desfez dessa certeza que o assola: ela está presente, mesmo que ele tenha desenvolvido um jeito particular de se servir dela. Apolônio está “curado”? Não. Apolônio não se livrou do seu sintoma, mas vive com ele, conseguindo superar todas as ameaças. Aliás, pondera ele, se depois de cinco anos ainda não o mataram, já diminuem as chances de acontecer. O Dr. Jorge resume: “houve melhora do delírio por decurso de prazo”. De certa forma, diz ele, é como vacinação: uma forma branda combate a instalação da forma mais virulenta. Querer mais ? Seria não ouvir o que Lacan dizia na sua conferência em Yale: “Uma análise não é para ser levada muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz é suficiente.”
Apolônio continuará sua análise, agora a cada quinze dias.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana