Por Claudia Riolfi
NikolaTesla só se tornou um gênio na medida em que prescindiu de modelos e de mentores
De acordo a Revista Época, em reportagem assinada por Berthier Ribeiro-Neto, em 17/03/2014, no Brasil, as mulheres constituem 59% da força profissional. Olhando para este número, em nome da libertação feminina todo mundo se apressa em ficar contente. Ao que parece, as moças não estão mais restritas ao seu balaio de costura.
Entretanto, olhando mais de perto, vemos que apenas 20% ocupam empregos em ciência da computação e áreas correlatas. As chamadas áreas mais avançadas permanecem sendo “coisa de homem”. Por que? De acordo com a reportagem, as moças não se lançam nas ciências mais inventivas porque faltam mentores, apoio e modelos a seguir.
Esta interpretação deixa uma pulga atrás da orelha: por que as mulheres alegam a necessidade de arquétipos a serem imitados? Essa alegada carência não dialogaria com uma representação de cientista como sendo um ser privilegiado? Dá mesmo para dizer que todos os cientistas bem-sucedidos saíram sorteados na loteria da existência com condições de vida mansa?
Não me parece. Ao menos é o que concluí quando, aproveitando uma estadia como professora visitante na Croácia, no início de 2014, fui conhecer um museu construído para preservar o local onde nasceu um dos cientistas que me fascinam desde que sou criança pequena: Nikola Tesla (1856 – 1943). Para quem não lembra, Tesla ficou conhecido pelas suas muitas contribuições revolucionárias no campo do eletromagnetismo no fim do século XIX e início do século XX. No meu caso, o cartão de apresentação foi a “bobina de Tesla”, peça presente em quase todos os museus de ciência e de tecnologia voltados para crianças.
No Memorijalni Centar Nikola Tesla, em Smiljan, pequena vila na região da Lika, na Croácia, tomei conhecimento de particularidades da vida de Nikola. Em especial, encantei-me com sua sensibilidade ao entrar em contato com trechos de seu livro “My Inventions”, que, inclusive, pode ser lido, em inglês, no link: http://www.teslinavizijainterneta.rs/wp-content/uploads/Nkola_Tesla_My_Inventions.pdf.
Para mostrar que Tesla só se tornou um gênio na medida em que prescindiu de modelos e de mentores, traduzo livremente um excerto:
“Na minha infância, eu sofria de uma aflição peculiar: a aparição de imagens, sempre acompanhadas por luzes. Elas se imiscuíam com a visão real dos objetos e interferiam com meus pensamentos e ações […]. Nenhum dos estudiosos de psicologia ou fisiologia consultados puderam explicar esses fenômenos satisfatoriamente […]. Eu mesmo investi muito tempo tentando solucioná-los. […] Eu logo descobri que o mais confortável era não se opor às visões, deixando-as aflorar de modo a conseguir novas impressões o tempo todo. Desde estão, eu comecei a viajar – na minha mente, é claro. Todas as noites (e, algumas vezes, durante o dia) quando eu ficava sozinho, eu começava minhas jornadas – via novos lugares, cidades e países – morava neles, encontrava pessoas e fazia amizades. Embora isso possa parecer inacreditável, esses amigos imaginários eram tão caros para mim quanto os do mundo empírico. […] Minha aflição infantil teve, portanto, uma vantagem secundária. A atividade mental incessante desenvolveu meus poderes de observação e me capacitou para descobrir uma verdade de grande importância. […] Ganhei grande facilidade para conectar causa e efeito. Para a minha surpresa, logo percebi que todo pensamento criado por mim havia sido, de algum modo, gerado por uma experiência exterior […]. Desde então, eu tenho planejado minhas rotinas e trabalhado para fornecer meios para meu raciocínio.”
Admirável. Por sofrer de doença física, Tesla poderia ter se acomodado no lugar de vítima. Por não ter encontrado quem o curasse, poderia ter se aferrado na posição raivosa de quem tem contas a receber. Por ter experimentado uma dificuldade de discernir a visão empírica das imagens que o parasitavam, poderia ter se apavorado, vítima de uma angústia paralisante.
Ao invés disso, foi a favor do seu sintoma, colocando-o para trabalhar a seu favor. Abriu-se para o novo, não se prendendo a um único padrão de exploração de suas possibilidades. Para coroar a ousadia responsável, incorporou suas descobertas em sua rotina de vida, tornando, o que em primeira instância havia sido um dispositivo para lidar com sua doença, um dispositivo sistemático para a criação.
Tesla não se ateve às linhas do seu suposto destino; inventou-o na forma da bobina que leva seu nome. Sua ação interpreta quem inventa desculpas para justificar não ter feito o que poderia. Não era mais fácil, tão somente, ter dito que queria outra coisa?
Claudia Riolfi é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo. Cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Psicanalista, é Diretora Geral do IPLA.