Por Liége Lise
O relacionamento entre pais e filhos vai muito além das leis jurídicas, mas em muitos casos estas são necessárias para garantir os direitos fundamentais à consecução da vida
Em 1971, Clarisse Lispector publicou um conto intitulado O Grande Passeio. Nele a personagem Mocinha é uma velha que após perder os filhos e o marido, no Maranhão, vai para o Rio de Janeiro. Vivia só no mundo, perambulando pela cidade, dependendo da caridade de terceiros e de lembranças do passado. A personagem reflete acerca da crueza da existência, do abandono e solidão, fantasmas que circundam a vida dos idosos.
Com o intuito de evitar o abandono dos idosos pelos filhos o governo chinês criou uma lei que obriga o contato entre filhos e pais em idade avançada. A lei determina que os filhos, cidadãos do país, regularmente visitem seus pais idosos. A lei despertou ceticismo, jocosidades e críticas.
É possível amar por decreto? Determinar legalmente a forma de cuidar daqueles que nos são caros ou que deveriam ser? Como despertar a dimensão do cuidado e do amor a vida àqueles a quem devemos um tributo por existir?
Paradoxalmente vivemos um tempo em que coexiste a banalização e o descuidado com a vida com a ascendência de alguns afetos fundamentais como a valorização dos laços amorosos com aqueles que nos são mais caros, pais, filhos e parceiros. A sacralização da vida ganha sua maior representação na família. Luc Ferry afirma que “Hoje, para a imensa maioria das pessoas, a verdadeira meta da existência, que lhe dá um sentido, sabor e valor, situa-se na vida privada. E essa evolução só se torna compreensível quando colocada em perspectiva no interior de uma história, a da família moderna…o mais belo apanágio da aventura democrática.”
É inegável que nos vínculos amorosos os afetos são contraditórios, dramáticos, intrincados e conflituosos. “Amódio”, assim Freud os batizou. O amor é uma invenção, um laço construído. Se antes respeitávamos os mais velhos por uma questão de reverência e obediência, hoje se observa, em muitos casos, um afeto terno e verdadeiro que pauta essas relações. Escolha decidida de estar com o outro porque assim o quero, porque é mais “forte do que eu”.
O psicanalista Jorge Forbes, a convite dos juristas para falar sobre esse tema, assim privilegiou essa questão: “Qual Família e qual Responsabilidade? Impõe-se a pergunta. Uma família que nos depare com a “miséria criativa” da condição humana – miséria de sentido, criativa de invenção – e uma responsabilidade não frente ao conhecido, ao que deveria ser; não uma responsabilidade do controle e da disciplina, que chegou a inspirar Freud no conceito de superego, mas um novo tipo de responsabilidade frente ao acaso e a surpresa. Saímos da época do Freud explica e entramos na época do Freud implica”.
As relações entre pais e filhos vão muito além das leis jurídicas e do politicamente correto. Sim, em muitos casos estas são necessárias para garantir os direitos fundamentais à consecução da vida. Melhor é a aposta na construção de um vínculo amoroso, que por mais ambivalente que possa ser, seja um convite à aventura da criação responsável da vida. Afinal, é o amor que nos livra da nossa condição animal. É um convite intransferível para um encontro com o inefável da nossa frágil humanidade.
Liége Lise é psicanalista. Atende na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP-SP. É membro do IPLA- Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP