Argumentar é preciso; ressoar não é preciso 02/10/2014

Por Carolina de Jesus Pereira

A análise dos textos produzidos pelas crianças mostrou haver neles a combinação de diferentes estratégias que culminaram em textos engenhosos e originais, contrariando o receio corrente de que a escola mina a criatividade.

“Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. […] A experiência da beleza tem de vir antes.”

[Rubem Alves]

A escola mata a criatividade dos alunos. Os professores não ensinam. As crianças não conseguem se envolver com atividades escolares porque são artificiais. O sistema escolar é padronizado e não responde às demandas de seus alunos. Será?

No dia 25 de setembro, Renata de Oliveira Costa defendeu, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a dissertação de mestrado  “Pequenos Publicitários: A persuasão na escrita de crianças”. Renata foi orientada por Claudia Riolfi, Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo e Diretora Geral do IPLA.

O propósito do trabalho era compreender como crianças dos primeiros quatro anos de escolarização buscam “vender seu peixe”, isto é, analisar de que estratégias se valem ao receber a tarefa de escrever um texto no qual esteja pressuposta a finalidade de influenciar seus leitores. Sem oferecer modelos durante essas atividades, Renata pretendia observar a espontaneidade dos alunos ao lidar com esse tipo de escrita.

A pesquisa foi movida pela preocupação acerca de como uma criança pode se tornar um escritor proficiente, que seria aquele que, ao escrever, consegue “tocar” seu leitor, gerando nele efeitos como o riso, a emoção e a surpresa. A análise dos textos produzidos pelas crianças mostrou haver neles a combinação de diferentes estratégias que culminaram em textos engenhosos e originais, contrariando o receio corrente de que a escola mina a criatividade.

O que é possível depreender de diferente na prática que levou a esses resultados? Em primeiro lugar, cabe observar que, em vez de temer o suposto “caráter alienante” da linguagem publicitária, Renata se ateve à sua possibilidade de ressonância. Não sobrecarregou os alunos com modelos a serem imitados, mas levou em conta o conhecimento que as crianças já tinham – ela nos informa de que as crianças brasileiras assistem por dia, em média, 3,7 horas de uma programação televisiva que, como sabemos, é recheada de anúncios publicitários.

Em vez de designar a si mesma a tarefa de munir os alunos com o ensino formal de todos os aspectos relacionados à escrita de textos persuasivos, reconheceu que o contato das crianças com as mídias poderia já ter ocasionado nelas o que chamou de “aprendizagem por contágio”. Em outras palavras, foi capaz de enxergar nas crianças uma bagagem de vivências que as tornava aptas a desempenhar, com êxito, tarefas que professores menos ousados ou implicados poderiam julgar demasiadamente complexas.

Ao final de seu texto, a autora nos convida a tomar as produções das crianças como inspiração para fazermos de nossos alunos verdadeiros escritores, e não meros “escrevedores”. Ouçamos a voz de Renata, que demonstra ter assumido o desafio de lidar com as responsabilidades inerentes à função de professora com entusiasmo e audácia. Sigamos o exemplo de quem demonstra, linha a linha, não ter temido a incumbência de construir alternativas inéditas.

Ao se propor a analisar textos com a intenção de observar se eles tocam, Renata constrói, ela mesma, um texto que emociona, que faz rir, que faz pensar, que desperta simpatia e ternura em seu leitor. Quando explicita o que se espera de um escritor proficiente, um leitor desavisado poderia responder com um popular “falar é fácil”. Renata, porém, legitima seu dizer ao se constituir como exemplo daquilo que fala. Faz-se exemplo duas vezes: tanto por ter construído, ela mesma, um texto que envolve o leitor quanto por ter conduzido seus alunos à autoria de textos que tocam.

Carolina de Jesus Pereira é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, no momento, está cursando mestrado.