Por Alain Mouzat
NOTA PRÉVIA
O IPLA-Instituto da Psicanálise Lacaniana tem se dedicado a pesquisar as modificações subjetivas e do laço social, na pós-modernidade. Essas pesquisas se baseiam na Clínica do Real, de Jacques Lacan, para uma psicanálise do Século XXI, uma psicanálise do “Homem Desbussolado”.
Nesse caminho, temos desenvolvido estudos e pesquisas teórico-clínicas dos efeitos do confronto da psicanálise com a revolução NBIC. Essa sigla, ainda pouco conhecida, em breve será muito debatida. Ela se refere a quatro revoluções tecnológicas que se alimentam sinergicamente: Nanotecnologia,Biotecnologia, Informática, Cognitividade, criando um futuro impactante, chamado por alguns de transumanismo (outra das novas palavras).
Publicaremos, a partir de hoje, nesta Newsletter, algumas notas desse estudo em andamento no IPLA e no Projeto Análise.
São Paulo, 3/12/ 2015
Jorge Forbes
PS: Já foi publicado, na última edição, 144, de O Mundo visto pela Psicanálise, o texto de de Dorothee Rüdiger Parece ficção científica, na edição 143, o texto de Claudia Riolfi, Da “Medicina 4P” para a “Psicanálise 4S” e na edição 142, o texto de Alain Mouzat,Transumanismo, transgressão em grande velocidade …
Aos políticos do futuro
Os políticos do futuro, ao que tudo indica, terão que se ocupar com questões de foro íntimo. Ao menos é essa a impressão que dá a leitura do último capítulo do livro La mort de la mort do médico francês Laurent Alexandre, no qual tece considerações sobre um futuro “Governo 2.0 para pilotar a biopolítica”. Essa biopolítica exige visão e capacidade de governo. Pois o cenário por vir pode ser bem aquele como apresentado no seriado de TV inglês Black Mirror . Se hoje já é temerário largar o smartfone cheio de gravações de conversas, fotos e itinerários traçados sobre a mesa, no futuro próximo, um chip será capaz de registrar tudo que se vê e se ouve. E se essas memórias no chip caírem na mão do namorado? Já pensou? E como conviver com seres humanos cada vez mais aperfeiçoados, com a perspectiva do prolongamento da vida humana para muito além dos 100 anos de idade?
A questão é como administrar uma revolução em curso que as possibilidades da nanotecnologia, da biotecnologia, da informática e das ciências cognitivas estão silenciosamente realizando nesse exato momento. Trata-se de saber, como criar regras morais e jurídicas para uma sociedade marcada pelos efeitos dos NBIC para que possamos desfrutar suas benesses e evitar seu “lado B”. Enfim, a questão é, quais atitudes tomar diante das mudanças paradigmáticas que nós, nossos filhos e netos vamos enfrentar.
Aos políticos de um futuro bem próximo convém agir com uma ética diferente dessa dos políticos contemporâneos. Esses políticos, assim sugere Laurent Alexandre, devem amar o futuro. Para início de conversa, tanto os políticos, quanto os cidadãos estão, hoje, despreparados para a tarefa que os espera. Afora os aficionados por tecnologia, os geeks, as pessoas não têm noção daquilo que acontece no campo da ciência e tecnologia. Pois deveriam ter. A ingenuidade dos agentes políticos, que vão criar e fazer valer as regras sobre a aplicação das NBIC, pode levar aos abusos públicos e privados tematizados pela série Black Mirror.
No entanto, reflete o autor, o atual sistema político em vigor no Ocidente dificulta políticas públicas a longo termo. Há um período legislativo e de governo muito curto. Assim, os políticos se deixam levar em suas decisões ao sabor das comoções populares do momento. O imediatismo geralmente leva a uma política conservadora. As novas questões são ligadas a interesses difusos na gestão do futuro e exigem a capacidade de projeção independente do credo religioso ou ideológico político. Será necessário promover recursos tecnológicos para, por exemplo, favorecer pessoas com deficiências mentais e financiar pesquisas que possibilitarão terapias genéticas para salvar vidas. A tomada de decisões dos políticos do futuro será realizada sob as pressões nas redes sociais, de um lado, e sob a influência do fato de que, na sociedade global, há outros países que já permitem em seus centros de pesquisa o desenvolvimento das NBIC.
A polarização política entre conservadores e abertos para a tecnologia só pode ser superada com novos programas políticos. Bem informados e formados, cidadãos e políticos podem tomar decisões que incluem uma visão sobre como gerenciar as mudanças tecnológicas e , ao mesmo tempo, manter as possibilidades de escolhas sobre quais tecnologias devem ser desenvolvidas, quem as financia e como se mantêm, principalmente, a neurossegurança. Laurent Alexandre propõe que os Estados, as Organizações Internacionais e a sociedade civil mundial, ao invés de recusarem o debate, realizem a governança global dessas questões, uma vez que atingem toda a humanidade. O desafio para essa governança mundial será de garantir que o ser humano continue a ser o “maestro” a dirigir o processo de inovação científica e tecnológica.
No contexto dessa governança, questões éticas, religiosas, psiquiátricas, filosóficas e geopolíticas entrarão em pauta. Com as possibilidades de prolongamento da vida nascerão novas demandas de sentido. Como ganhar mais vida, saúde, inteligência e beleza e evitar as formas “orwellianas” de poder autoritário que o uso das tecnologias NBIC pode suscitar? Como administrar a angústia que a vida prolongada dos belos e inteligentes, paradoxalmente, possa causar?
Porque, sim, a perfeição incomoda. Jorge Forbes dá um bom exemplo disso em seu artigo Fogueira de felicidades: Quem aluga um chalé do Lago Como, na Itália, paga aluguel adiantado. Não suportando tanta beleza do cenário, pode fazer as malas mais cedo.
A ética da psicanálise será necessária para tratar os pacientes do futuro. Diante da nova angústia causada pela vida aperfeiçoada e, quem sabe, ilimitada, de acordo com Laurent Alexandre, os psiquiatras e psicanalistas serão solicitados. A vida eterna é traumatizante. “A morte sustenta a vida,” diz Jacques Lacan, em 1972, em sua Conferência na Universidade Católica de Louvain. O aumento da capacidade cerebral de armazenar memórias será uma tormenta. A possibilidade de apagar ou preservar memórias possibilitará mudanças graves de identidade ao longo da vida . Novas drogas irão dar novos “baratos” e modificar a capacidade intelectual. Quem vai prescrever essas drogas? Quem decide sobre as memórias que devem ser preservadas ou deletadas? Como se garante a liberdade de escolha sobre memórias as guardadas num chip? Vai haver a necessidade de uma regulamentação de drogas e de implantes que podem fornecer informações corretas ou manipuladoras.
Bebês com a genética perfeita podem, quando crianças, adolescentes e adultos, sofrer por causa da sua perfeição. Já que foram feitos com tanto cuidado, a cobrança dos pais tende a aumentar. Podem ouvir frases do tipo: ” Gastei a maior grana para você ser superinteligente e olha só a nota que você me traz no boletim!” Quando as expectativas são de perfeição, é fácil não atender a elas. Por outro lado, sem a morte, a maioria das pessoas não terá mais nem vontade de ter um bebê, por mais perfeito que seja. Para quê um imortal vai querer procriar para se perpetuar no mundo? Com o prolongamento da expectativa de vida a angústia diante da possibilidade de uma morte precoce aumentará em pessoas mais frágeis, em soldados e policiais, em caminhoneiros e bombeiros, enfim em todos que correm riscos. E os pais terão uma dose extra de pavor diante das estripulias dos filhos.
Os psicanalistas poderão, junto com os filósofos, ser chamados para os debates sobre o homem, sua dependência e inadequação à civilização. Quais são as capacidades genéticas inatas do ser humano, quais as adquiridas pelo processo civilizatório? Qual é o papel do livre arbítrio? Como sair do falso dilema entre determinismo genético e social? São as determinações sociais ou é nosso mapa genético, feito mapa astral, o que determina nosso destino? O psicanalista Jorge Forbes e a geneticista Mayana Zatz que, há quase dez anos, mantêm uma clínica psicanalítica no Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, sabem que “a genética não é o destino”. Preparemo-nos para as inúmeras questões que virão dos políticos do futuro.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo
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