Por Helainy Andrade
Será que é menos danoso para uma criança trocar de família, quando a própria família a educa à sua maneira?
Um menino levado se queixa, na escola, de que seus pais foram maus com ele. O corrigiram pela última travessura. Poucos dias depois, ele e seus quatro irmãos são retirados dos pais. Nem na sua mais cruel fantasia o tagarela pediria esse castigo para aqueles que agora passaram a ser considerados seus “malfeitores”. A história do filho de uma família portuguesa com cinco filhos passou-se no Reino Unido. De acordo com uma denúncia feita pelo deputado da Casa dos Comuns e do presidente do grupo Justice for families, John Hemming, há, naquele país, a cada ano, em torno de 12.0000 famílias que sofrem a separação forçada entre pais e filhos. Nos últimos sete anos, o governo do Reino Unido vem oferecendo benefícios financeiros para adoção de crianças. Além disso, paga, para as famílias que acolhem, ainda que provisoriamente, um valor semanal que pode ser multiplicado pelo número de crianças recebidas em casa. Tem uma gorda quantia também para os órgãos encarregados de entregar as crianças para as famílias adotivas, desde que aumentem em 50% os números das adoções e cumpram uma espécie de meta para bater. Finalmente, o governo oferece um excelente rendimento para as agências envolvidas na troca de famílias.
Assim, o fato é que em uma década o número de famílias que perdeu seus filhos nessas condições cresceu 141%. Esses fatos só vem ao conhecimento público agora, porque os envolvidos eram proibidos de falar sobre o que lhes tinha ocorrido. Os tribunais de família também se reservavam o direito ao silêncio. Sequer diziam às famílias porque seus filhos estavam sendo retirados. Não permitiam o acesso aos arrazoados que sustentavam as deliberações dos juízes. Sem os arrazoados, não havia recursos possíveis e a maioria das adoções ganhou o status de irreversível.
O governo e o serviço social do Reino Unido alegam que as crianças são colocadas para adoção, sem o consentimento de sua família, porque os pais representam um “risco futuro de dano emocional” aos seus filhos. Essa foi a justificativa dada, quando veio a público a medida tomada contra a referida família portuguesa. De fato, nossa época conhece a violência inusitada, que de tão recorrente entrou para a categoria de novo sintoma do tempo atual, conforme cunhou Jorge Forbes. Infelizmente, casos de crianças realmente maltratadas ou mesmo mortas pelos próprios pais, e vice-versa, ocorrem em muitos lugares do mundo.
No Reino Unido, entre tantas medidas que pudessem ser, de fato, cuidadosas, o governo decidiu agir preventivamente. Ao fazer isso, chama para si a condição de saber o que é melhor para as crianças que habitam seu país. Será que é menos danoso para uma criança trocar de família, quando a própria família a educa à sua maneira? A vida numa família que não segue a um padrão imaginado e aplicado pelo serviço social é perigosa? O governo e o serviço social, quando creem ter critérios para a vida familiar padrão e aplicam a adoção forçada, podem garantir que a criança esteja fora de perigo em seu novo lar?
Como no filme Minority Report, qualquer cidadão passa a viver sob suspeita de ser futura – ou potencialmente prejudicial para alguém. A tentativa de querer se prevenir contra danos futuros, contra o acaso, contra o Real pelas ações das repartições públicas abre, tal como na ficção científica do filme, perspectivas assombrosas. Quem garante que amanhã, em alguma repartição pública (não precisa ser no Reino Unido, pode ser em qualquer Estado) não se inventem medidas preventivas, digamos, contra obesidade? Um funcionário público vai cismar que alguém está acima do peso e deliberar uma internação compulsória para que essa pessoa se trate de uma possível futura obesidade mórbida. Outro funcionário pode suspeitar que se alguém riu sozinho na rua, o riso pode ser um dos primeiros sinais de um surto psicótico. O risonho deverá então ser recolhido para tratamento antes de representar uma possível futura ameaça para a sociedade.
Querendo prevenir, ainda mais com medidas drásticas tais como as do governo do Reino Unido, o Estado só consegue piorar a desorientação típica do nosso tempo. Consegue contribuir para a desagregação de laços familiares que nunca serão harmoniosos. Querer prevenir seus conflitos pela separação é inócuo e cruel.
Helainy Andrade é psicanalista em Varginha-MG e membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA-SP.