Além das fronteiras 10/09/2015

Por Dorothee Rüdiger

Romper fronteiras não é, para a psicanálise, nenhuma novidade. Quando Sigmund Freud descobriu o inconsciente, começou a desenhar seus mapas e dedicou sua vida a desvendar seus segredos, pisou em terra estranha

Para que fronteiras? Para que passaportes, policiais, revista de pessoas e de veículos para não deixar pisar em terras alheias quem teve de fugir da guerra ou da fome? Para que cercar territórios e fazer neles a distinção entre cidadãos e não-cidadãos, entre direitos e não-direitos, responsabilidades e não-responsabilidades, filhos da pátria e forasteiros?

O desejo de viver faz, nesse momento, populações inteiras procurarem uma nova existência longe de suas comunidades. Há refugiados rompendo fronteiras na Europa. Aqui, no Brasil, há migrantes clandestinos que, invisíveis para muitos, lotam fábricas com condições de vida sub-humanas em São Paulo. O êxodo é arriscado, muitas vezes auxiliado por “coiotes”. Exige esforços de toda ordem e pode acabar em morte.

Refugiados enfrentam o desconhecido em terras alheias, onde não se come o mesmo pão, não se fala a mesma língua, não se obedece à mesma lei. Juntam-se em grupos para realizar a travessia. No entanto, o sofrimento de quem procura uma nova base para sua existência é singular, pois cada um vai ter de se haver com a nova e estranha realidade no estrangeiro.

O drama dos refugiados da guerra e da fome é um paradoxo no mundo globalizado, que sugere que sejamos cidadãos do mundo. Nos faz crer, e em muitos casos isso já é uma realidade, que tenhamos o privilégio de poder escolher onde viver: constituir uma família, estudar, trabalhar e contribuir para a permanente construção da cidadania de um país, ainda que estrangeiro. Desde a Queda do Muro de Berlim, uma viagem internacional tornou-se mais rápida, econômica e segura. A internet teceu uma imensa rede de comunicação que proporciona contatos pessoais e possibilita ações políticas globais inusitadas. Informações a respeito de qualquer assunto e em qualquer língua estão disponíveis na nuvem criada e sustentada pelos recursos contemporâneos da informática. Estados nacionais se veem constrangidos a submeter parte de suas políticas a decisões da comunidade internacional à qual pertencem. Catástrofes naturais, crises econômicas e culturais e conflitos bélicos são temas globais.

Se, por um lado, existe algo digno de ser chamado de uma sociedade global que implica a cidadania cosmopolita, por outro, quem decide construir uma existência fora de seu país de origem enfrenta barreiras burocráticas e jurídicas. No mundo jurídico, o Estado nacional ainda dá as cartas apoiando-se em suas leis e na soberania assentada na ideia do exercício da força. Tratados internacionais são sujeitos a longos processos legislativos internos de autorização para que sejam ratificados e ganharem eficácia e, portanto, vida. Para pessoas migrantes e refugiadas existem fronteiras que podem abrir ou fechar, dependendo da conjuntura global.

Romper fronteiras não é, para a psicanálise, nenhuma novidade. Quando Sigmund Freud descobriu o inconsciente, começou a desenhar seus mapas e dedicou sua vida a desvendar seus segredos, pisou em terra estranha. Por ser sem pátria nem fronteiras, a psicanálise pode contribuir para a construção de uma nova visão sobre os direitos humanos dos cidadãos do mundo contemporâneo. Esse mundo necessita de uma profunda mudança paradigmática, também no campo do direito. Na concepção iluminista dos direitos humanos, que se consolidou com os Estados nacionais, somos livres e iguais, porque somos seres da razão e capazes de manter um sistema de poder que nos garanta nossos direitos. A partir da descoberta do inconsciente sabemos que “não somos donos em nossa própria casa da razão”. Somos seres do desejo, castrados pela lei da civilização, nosso Outro. Todos amamos, odiamos e sentimos angústia diante do amor e da morte. Somos seres falantes. Falamos milhares de línguas, mas temos a capacidade de falarmos uns com os outros, de criarmos laços afetivos, ou de destruí-los, se formos irresponsáveis. A psicanálise aposta na capacidade humana de criar e recriar a civilização de uma maneira pacífica.

A capacidade humana de conviver de maneira criativa com a civilização independe de sua expressão jurídica positivada pelos Estados. Nessa perspectiva, todos os seres humanos, independentemente de sua nação, de sua cultura e de sua religião, são cidadãos do mundo. Cada um pode escolher seu lugar para viver, desde que assuma a responsabilidade que a convivência com o outro possa trazer consigo. Interconectados que somos, crises políticas e econômicas pelo mundo afora nos atingem como cidadãos globais, mesmo se não vivermos “no olho do furacão”. Exigem nossa responsabilidade por aquilo que escapa de nossas mãos: guerras em terras alheias, catástrofes naturais longe de casa e crises econômicas aqui e alhures.

No mundo globalizado, gestos cosmopolitas valem mais do que palavras. Tocados pelo drama dos refugiados no Sul da Europa, doze mil famílias irlandesas, contrariando a política para refugiados de seu governo, ofereceram suas casas para famílias de refugiados sírios. O Papa Francisco, repetindo o gesto, decidiu abrigar duas famílias no Vaticano. Pediu aos párocos da Igreja Católica abrirem aos refugiados as portas das casas paroquiais. São esses e outros gestos que romperão fronteiras políticas, culturais e religiosas para pôr em prática a cidadania cosmopolita. 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo