Por Claudia Fabiana de Jesus
O seu sintoma era se autoflagelar: se machucava, se beliscava, se arranhava, quebrava os objetos do seu quarto, e, algumas vezes, havia cortado os braços com gilete
Fui procurada pela mãe de João, que demandava atendimento para o filho, de 17 anos. Ela havia encontrado maconha (cannabis sativa) nas coisas dele. Para ela, era inadmissível tal comportamento, dada a educação que deu ao menino e por ela e o marido serem médicos, profissionais da área da saúde. Estavam preocupados com a repercussão pública do fato.
Nos primeiros atendimentos com João, ele se colocava em uma atitude de recusa. Afirmava que veio por causa da mãe e que não queria estar ali. Ao final da sessão, intervi: Você sempre faz o que a sua mãe quer? Que filho obediente! Encerrei a consulta e entreguei o meu cartão de visita com meus telefones para ele.
Após esse encontro, ele ligou pedindo um horário. Em outra posição, agora de quem demandava uma escuta, João iniciou a conversa contando da pressão que sentia dos pais diante da escolha profissional. Eram médicos renomados e, à época do vestibular, tinham expectativas de que o filho escolhesse por um curso universitário. Ele estava com dúvidas diante dessa decisão.
João não falava da maconha nos dois primeiros meses de atendimento. O foco era o relacionamento com os pais. Não tinha voz para falar de si. O seu sintoma era se autoflagelar: se machucava, se beliscava, se arranhava, quebrava os objetos do seu quarto, e, algumas vezes, havia cortado os braços com gilete. Falava que não entendia o porquê de fazer isso. Sentia-se estranho e tais impulsos eram mais fortes do que ele. Na análise, encontrou um lugar para falar da satisfação em se machucar, pois isso ele escondia dos pais e amigos. Disse que um dos efeitos foi um alívio por ter podido compartilhar sua “parte esquisita”. Perguntei: Este esquisito é seu, o que você tem de mais único e singular?
Nos encontros seguintes, João contou que percebia que não estava mais agressivo consigo. Afirmou que, apesar de se sentir pressionado, não queria ficar mais assim e começou a falar do uso esporádico que fazia da maconha para se aliviar do estresse, das suas angústias, dos seus medos, das suas incertezas, das suas dúvidas. Falou que não era “maconheiro”. Não fiquei presa ao julgamento moral e aos protocolos de qualidade de vida. Quis ouvir seu sofrimento e o que da sua subjetividade estava precisando ser anestesiada com a maconha.
Na análise, ele pôde expressar o prazer do uso da substância psicoativa sem medo de ser estigmatizado como “drogado”, uma nomeação carregada de significantes que o fixavam em um lugar degradado. Incidi sobre a consequência do consumo da maconha. Em uma das sessões, num gesto com as mãos, como se estivesse fumando, perguntei: Você quer continuar fazendo uso da maconha? Ele respondeu: Não sei o que quero, tenho dúvidas, mas sei o que não quero. Não quero mais ficar me agredindo, não quero buscar saídas imediatas e anestesiar minhas dores.
A cada sessão João falava de suas intimidades esquisitas, de suas satisfações e insatisfações. Passado um tempo de tratamento, manifestou o desejo de fazer um intercâmbio no Canadá. Queria por um período estar longe do que ele nomeou como o personagem: o filho perfeito do casal de médicos exemplares. Queria aprimorar o seu inglês e viver a experiência de estar sozinho. A análise, nesse momento, incidiu sobre a responsabilidade diante da mudança de registro do dever para o querer consequente. A passagem do “você tem que”, para a escolha a partir de um “eu quero, logo”.
Antes de ir para o Canadá, João contou que estava conseguindo dialogar com seus pais. Não temia expressar suas ideias e sentimentos, conseguia falar de maneira mais direta com eles. Falou para mãe para ela não ficar encanada, pois não estava indo para o Canadá para fumar maconha. Meses antes de viajar, não fazia mais uso da droga. Parou de se cortar, de se autoagredir e ampliou seu círculo de amigos. Mudou sua posição diante dos pais e diante da vida.
Durante o tempo em que esteve no Canadá, mantinha contato regular comigo pelas redes sociais da internet. Avaliava que esse distanciamento dos pais estava sendo bom para ele. Sentia-se mais leve consigo mesmo, apesar das incertezas e das contradições. Aceitava seus diversos lados e certa vez ponderou: Até que o esquisito de mim não é tão ruim assim…
Quando voltou do Canadá, retornou aos atendimentos e prestou vestibular para medicina. Com senso de humor, leveza e ironia, falou: Tive que ir longe para descobrir algo que estava tão perto. Quero fazer medicina e não me resumir em ser filho de médicos… A escolha agora é minha e não dos meus pais…
Claudia Fabiana de Jesus é psicóloga, Mestre em Psicologia da Saúde.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.