Por Ana Carolina Barros Silva
O que está envolvido no processo de adoção de uma criança? Testar os laços pode incluir atitudes agressivas e pouco amorosas para com os novos pais, que, não raro, se sentem confusos e com dificuldades de lidar com a situação.
Em reportagem publicada no site da revista Veja, Nicole Fusco afirma que, a cada 45 dias, duas adoções “dão errado”. Ou seja: as crianças acabam retornando para a instituição de abrigamento, porque não houve “adaptação”. É trágico. Por que um evento (que envolve tantos cuidados burocráticos, tantas etapas pensadas para evitar traumas) algumas vezes acaba desse modo? O que está envolvido no processo de adoção de uma criança? Penso que, para responder essa questão, é fundamental colocar três pontos no centro da cena.
O primeiro deles é o desejo dos pais. Todas temos fantasias, expectativas, ideais. Por esse motivo, é preciso olhar tudo aquilo que se passa quando alguém engravida. Precisamos considerar um discurso a respeito da criança que antecede sua existência naquele grupo familiar. Isso significa dizer que temos, no mínimo, dois olhares: aquele que vem do casal parental e aquele que vem da criança. Esses olhares podem entrar em concordância ou não. Quando a criança, por qualquer motivo, não se encaixa naquele lugar ofertado para ela pelos pais, conflitos acontecem. Isso não é, necessariamente, um problema. Toda a questão se resume em como é possível lidar com a situação de conflito. Sair do lugar forjado pelos pais pode ser uma saída muito positiva para uma criança. O segundo ponto é o desejo da criança. Assim como os pais, a criança tem uma história prévia. Ela não pode ser negligenciada. A criança também nutre expectativas e fantasias a respeito de sua nova família e, comumente, precisa “testar” a confiabilidade de seus novos laços familiares. Para ela, a “instituição família” foi falha em um momento decisivo de sua constituição subjetiva. Testar os laços pode incluir atitudes agressivas e pouco amorosas para com os novos pais, que, não raro, se sentem confusos e com dificuldades de lidar com a situação. O conflito piora nos casos em que a família nutre a fantasia de ser “salvadora” daquela criança que deveria agir com “eterna gratidão”. Obviamente, nessas situações é preciso lidar com conflitos e quebras de expectativas para que o laço possa de fato se constituir.
O terceiro e último ponto diz respeito ao próprio laço familiar. Uma criança gestada na barriga de alguém não nasce “filho”. Analogamente, o fato de ter gestado como não faz deste alguém “mãe”, a “maternidade”, a “paternidade”, a “fraternidade” e a “filiação” são laços constituídos social e subjetivamente. Não implicam, necessariamente, vínculos biológicos. Isso significa que o processo de adoção acontece para uma criança abrigada ou não. Alguém torna-se “filho” à medida que uma adoção é possível dentro do desejo dos pais e da criança.
Estes três pontos podem esclarecer um pouco as redes complexas que circundam o processo de adoção, quando esse é visto única e exclusivamente em sua perspectiva burocrática e jurídica. Aponta para a necessidade de que as instituições de abrigamento, jurídicas e familiares, sejam assistidas por um profissional qualificado em todo o percurso.
Ana Carolina Barros Silva é psicanalista e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo.