Por Dorothee Rüdiger
Um dia acaba a festa e a agenda de 2014 vai se enchendo de compromissos
Daria para acostumar com a moleza das festas e férias. Afinal, quem não gosta de comemorar com parentes e amigos, dormir até mais tarde e passear, seja na praia, seja com a criançada no ar-condicionado do shopping? Quem não curte assistir aos últimos lançamentos da indústria cinematográfica nacional e internacional, sem ter de se preocupar com o trabalho que ficou sobre a escrivaninha? Quem não está feliz com o rodízio suspenso na capital paulista? Bom demais.
Mas, um dia acaba a festa. A agenda de 2014 vai se enchendo de compromissos. Resta a cada um se conformar e coroar os dias de folga com um retorno tranquilo, para chegar à primeira reunião do ano com aquela disposição. Ao menos é essa a ideia de um feliz retorno ao trabalho. No entanto, nas férias e nos feriados, é fácil esquecer que a vida tem lá seu lado “Real”, como chamado por Jacques Lacan, aquilo que escapa às agendas, aos planos e à imaginação de um bom desfecho de dias festivos, como ilustra o seguinte episódio.
De repente, dois quilômetros antes da chegada à casa, os caminhões à frente brecam, acedem o pisca-alerta, param. Pessoas das redondezas do rodoanel correm para ver. Motoristas saem dos carros, descem dos caminhões, de celulares em punho para avisar, alertar. Está havendo um protesto. Uma fumaça preta e fedorenta escurece a visão à frente. Chega a força tática. Policiais com armas em punho correm para lá e para cá. A voz do comandante chama à ordem. “Guardem as armas. O povo está há dez dias sem água.” Apagam o incêndio. Deixam os viajantes seguirem seu rumo, embora fedendo a lixo queimado.
Episódios como esse lembram que por mais que se queira, por mais que se procure ter distância do Real, ele não só está onipresente, como se impõe imperiosamente sobre nossos planos, escapando das tentativas de previsão, de controle, aniquilando a fantasia de um mundo perfeito de festas e férias. O Real é capaz de chacoalhar e de fazer acordar de um sonho de perfeição. Aparecem, logo no início do ano, os desafios: chuvas com deslizamentos de terras e enchentes, violência nos presídios, falta da infraestrutura, chacinas, “rolezinhos” de adolescentes em shoppings e a reação a eles. A lista é longa. Mas, há também, e de repente, os encontros, os gestos generosos, a ordem de guardar as armas, as saídas negociadas e solidárias de situações difíceis.
Assim, vale encarar 2014 com suas dificuldades e desafios pela frente, o que inclui protestos com lixo queimado. Acabou a moleza. E daí? Pois, como diz o ditado, “a vida é dura, para quem é mole”.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo