A tecnomedicina e a uberização do mundo 20/10/2016

Por Alain Mouzat

Esse texto foi apresentado em 4/10/16, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curso semanal, que trabalha atualmente as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.

Leitura do cap. III de A revolução transumanista  – como a tecnomedicina e a uberização  do mundo vão alterar nossas vidas, de Luc Ferry.

Esse capítulo está inteiramente dedicado à “Economia colaborativa e à ‘uberização’ do mundo”, se colocando a pergunta: será “eclipse do capitalismo ou desregulação selvagem?”

O que tem a ver com transhumanismo? 

A última frase da conclusão do capítulo anterior me parece reveladora:  “Como veremos, é no fundo com problemas de regulação, não idênticos, claro, mas análogos, que nos deparamos assim que se examina as consequências concretas das novas tecnologias no âmbito da economia e do comércio”.

Em poucas palavras, frente à inovação galopante das tecnologias temos que tomar nossas precauções. As inovações não podem tudo, mesmo se elas aparecem inicialmente com efeitos sedutores sobre a organização econômico-comercial, não podemos deixar acontecer, laisser-faire, pois no fundo os efeitos são avassaladores.  Há necessidade de regulação.

Como interpretar a entrada do Uber, por exemplo?  Como uma liberalização que vai romper os monopólios abusivos dos taxistas e permitir preços mais baratos dos serviços. Oferecer oportunidade de lucro para todos os que se propõem a simplesmente usar seu carro para ganhar dinheiro, ou como a destruição das proteções sociais, contrato, impostos e outras regulações que permitiram nosso estado de bem-estar social?  (pelo menos na França)

Temos que nos alegrar ou temos que temer essas mudanças?

Para argumentar, Luc Ferry vai escolher um adversário sob medida: Jeremy Rifkin.

Quem é Rifkin?

Nascido em 1945, Jeremy Rifkin é um intelectual, ensaísta e conferencista, particularmente ativo na defesa de suas teses junto a políticos e instituições.

Jeremy Rifkin vem da militância ativista: contra a guerra do Vietnam, grande organizador de um protesto contra as companhias petrolíferas em 73, defensor do meio ambiente, clima, das energias alternativas, da economia colaborativa, contra o patenteamento do vivo (apropriação dos genomas, e comercialização do genes) ….  em suma, ele é um ideólogo do mundo contemporâneo.

Ele é particularmente conhecido pela sua teoria da terceira revolução, uma análise das evoluções da sociedade contemporânea que ele soube vender ao Conselho da Europa. (adotada pelo Parlamento europeu em 2007): 

As três revoluções segundo Rifkin:

Três pilares fundamentais: nova fonte de energia que permite multiplicar a produção – nova forma de comunicação (transporte e logística) – Nova organização social da produção.

Façamos um quadro

 

Energia

Comunicação logística

Organização social de produção

1a revolução

Séc. XV a XVIII

A imprensa de Gutenberg

A máquina a vapor

Jornais

Do campo para a cidade

 Núcleo de produção hierarquizada

2ª revolução

Século XIX – XX

Motor a explosão e eletricidade

Telefone, telegrama, rádio, TV, estradas, aviões

Urbanização e hierarquização se acentuam

3ª Revolução

Hoje

Internet

Web e redes mundiais

Economia colaborativa

A internet é múltipla, só pensamos inicialmente na internet da comunicação, e-mail, redes sociais, etc. Google, Amazon, Facebook, Apple (Gafa) e os aplicativos Uber, Mercado livre, Decolar, pagos ou gratuitos (evidentemente não há nada “gratuito”) etc… Mas também a internet da energia (possibilidade de interligar comunidades que vão produzir sua própria energia eólica, solar, etc.) que vai concorrenciar os grandes fornecedores (tipo, CPFL), a internet da logística, que permite organizar os transportes, racionalizar as cargas, o uso dos carros, das estradas… e a Internet dos objetos conectados (podem-se imaginar as aplicações, desde a saúde, a segurança, etc…).

 A Terceira revolução será a das energias descarbonadas, energias verdes, o eólico, o fotovoltaico, a geotermia, a pilha de hidrogênio, etc.. 

Uma vida econômica pós-nacional, desierarquizada e descentralizada.  Ligada às redes sociais universais, à coleção e análise dos big data, ao crescimento da economia de partilhamento, dos “Comunais colaborativos”, isto é, à luta contra toda forma de impor limites, cercas de propriedade privada, de reserva particular… (as inclosures), para pôr tudo em rede a qualquer momento, sem nenhum limite e de graça. A web dá origem a novos modos de relação, a seres conectados em comunidades abertas à colaboração, avessos aos interesses mercantis do lucro sempre maior imposto pelo mercado.

Em resumo, uma sociedade pós-capitalista, abrindo para comunais colaborativos ao mesmo tempo fora do Estado e fora do mercado…

Ponto positivo, diz Ferry, Rifkin nos fala das realidades que já vivemos, das revoluções tecnológicas acontecendo que vão transtornar profundamente nossas vidas.

Mas o que incomoda particularmente Ferry, e que lhe permite discordar e assim argumentar, é o irenismo de Jeremy Rifkin.

Frase como esta “ela [a Internet dos objetos] possibilita a todos os humanos e a todos os objetos comunicarem entre si para procurar sinergias e facilita essas interconexões com vistas a otimizar a eficácia da sociedade ao mesmo tempo que assegura o bem-estar  global do planeta”.

“O bem-estar global do planeta”! Apenas isso! exclama Ferry.  Não. Tem mais. Segundo Rifkin, a nova economia dita “colaborativa” vai ao mesmo tempo rompendo as restrições dos Estados, e escapando às leis do mercado, criando sua própria sinergia, seu próprio modo de estabelecer um laço social. Em suma, o fim do capitalismo.

Os três últimos livros dele anunciam o tom:

  • 2010, The Empathic Civilization: The Race to Global Consciousness In a World In Crisis, Jeremy P. Tarcher, ISBN 1-58542-765-9 www.empathiccivilization.com
  • 2011, The Third Industrial Revolution: How Lateral Power Is Transforming Energy, the Economy, and the WorldPalgrave
    Macmillan
    ISBN 978-0-230-11521-7
  • 2014, The Zero Marginal Cost Society: The internet of things, the collaborative commons, and the eclipse of capitalismPalgrave MacmillanISBN 978-1137278463 

Pensar que entramos numa sociedade pós-capitalista porque o lucro não é a principal dinâmica dessa economia colaborativa?

O argumento é que estamos caminhando para uma “sociedade de custo marginal zero”: isto é, juntando o fenômeno de “long tail” [a cauda comprida], a estocagem na internet barateou muito os produtos, assim não importa vender muito caro, pode vender barato porque haverá vendas por muito tempo e que todos as despesas já foram pagas.

Ferry vai observar: “Quase de graça”, não quer dizer que não gera lucros enormes.

A mesma coisa para os serviços “de graça” e abertos a todos, do Google: todos sabemos que alguém paga. [E como dizia um economista “se é de graça é porque é você o produto”] Assim os big data, fornecidos pelos algoritmos dos sites permitem organizar perfis de consumidores em escala mundial. Lembrando que, recentemente, foram roubados dados de mais de 500 milhões de usuários do Yahoo.

Que as novas tecnologias tenham um impacto nas nossas vidas, sem dúvida, mas não é bem o fim do capitalismo que anunciam: as GAFA são altamente monopolísticas, não deixam senão migalhas aos concorrentes nacionais e concentram valores de capitais altos: assim estima-se que o Uber , sem possuir um carro,  e avaliado hoje pelo mercado mais do que a Petrobrás.

O que pode trazer a pergunta: qual é a mercadoria?  Seu próprio carro, no caso, Uber, seu próprio apartamento no caso AirBnb, você mesmo nos big data do Google e outros.

É o que Ferry vai chamar de mercadorização da vida privada.

Que as novas tecnologias tenham um impacto nas nossas vidas, não podemos negar, mas pensar que elas transformam as novas gerações – Y e Z – em sujeitos empáticos, em  sujeitos ciosos dos interesses do outro, não dá. E Luc Ferry,  sempre bem armado para as contendas, puxa do seu colete uma pesquisa de uma universidade americana atestando uma baixa de 40% de empatia. Não dá para levar as conclusões de Jeremy Rifkin a sério, conclui Ferry.

Enfim,  que as novas tecnologias tenham um impacto nas nossas vidas, é evidente, na destruição  dos empregos: todos os empregos, ou só os mais repetitivos e desqualificados?  Todos a priori são ameaçados pelos progressos da IA. Mas será que essa destruição não é própria da dinâmica do capitalismo, como o quer Schumpeter, e não veremos outros empregos emergirem de atividades mais criativas, criadoras.

De fato, a substituição dos empregos está galopando. Aqui no Brasil, estamos acostumados há muitos anos, com os caixas eletrônicos dos bancos e sabemos que esse ganho de mão de obra (a nossa) não foi revertido  em nosso benefício de usuário.  A mesma coisa está acontecendo nos aeroportos: agora se faz o check-in on line e,  último gadget,  é o próprio viajante quem etiqueta e despacha suas bagagens  na hora do embarque. Será o fim do trabalho?

Ferry , no entanto vai reafirmar sua confiança em Schumpeter e na teoria da Inovação destruidora: O crescimento da criação de empregos responde, mas não suficientemente, rápido, sempre deixando um saldo negativo, mas  – e aqui Ferry vai recorrer a outro economista, Nicolas Bouzou –  é porque os efeitos positivos demoram mais para aparecer, demora décadas antes que os percebamos.  E  Ferry convoca Schumpeter:  sim é “a dinâmica da “destruição criadora” que  constitui o dado fundamental do capitalismo: é nela que consiste, em última análise, o capitalismo, e toda empresa capitalista deve, de bom ou  mal grado,  a ela se adaptar”.

A temática do fim do trabalho tem uma importância particular na França, onde vai dividir esquerda e direita. Para a esquerda,  a destruição dos empregos deve ser controlada por medidas de proteção social, salário desemprego, por exemplo, e a redução do tempo de trabalho, às “ 35 horas” reivindicadas, que permitiria a abertura de novos postos de trabalho.  Não por acaso o livro de Rifkin, O fim do trabalho, foi prefaciado na sua versão francesa por Michel Rocard, grande miltante socialista, ex – primeiro ministro de Mitterand,  e deputado europeu, falecido recentemente.  [A versão portuguesa da editora Makron tem por título O fim dos empregos].

A solução de Ferry é diferente. Ele sugere a redução do tempo da proteção social para incentivar o retorno ao emprego, a  flexibilização do tempo de trabalho, podendo ser aumentado ou diminuído em função das necessidades do setor.  Sugestões que bastariam para jogar nas ruas de Paris  milhares de manifestantes por pelo menos um mês.

Ferry, frente à uberização do mundo, isto é, à mercadização  das nossas vidas pelo desenvolvimento das grandes empresas ligadas ao uso da digitalização rejeita a posição que ele vai chamar de luddista – em referência a um movimento de revolta, na década de 1810, dos operários ingleses contra  a introdução de teares industriais (ned ludd), tendo acontecido o mesmo na França em Lyon com os operários da seda (1830) ( a revolta do canuts)  –  posição de recusa da inovação.

Por outro lado ele rejeita a posição de Jeremy Rifkin,  que ele taxa de irenismo (irenismo , lembrando que em grego irenê é a paz), essa tendência a apagar todas as contradições de um sistema, para evitar se confrontar com as contradições e dissensões.

Assim Ferry denuncia o discurso de Rifkin como uma “ ideologia”. Diz ele: “É raro poder assistir de modo tão claro ao surgimento do que Marx chamava uma ideologia, isto é, um discurso inteiramente voltado a transfigurar a realidade para dar alguma legitimidade a uma nova distribuição econômica,  no caso enganar os trouxas e fazer confundir a desregulação desenfreada por uma nova face da ética”.  (p. 163)

Concordo. Mas eu faria observar a Ferry, que ele vai receber exatamente a mesma acusação dos analistas de esquerda: “ideólogo de direita”, vão dizer.  Que quer nos enganar fazendo aparecer o desemprego como um prenúncio de criatividade e de tempos melhores, e aproveitar para atacar os direitos sociais tão duramente conquistados nas lutas operárias desde o século XIX.

O argumento da conformidade dos discursos  à “ realidade” os remete de novo aos diferentes tipos de verdade, verdade coerencial, verdade referencial. Mas a verdade permanecerá sempre do domínio do significante, e como tal será sempre um semblante, que se sustenta mais do que outro, que não deixa transparecer que a verdade apenas se meio-diz.

Mas, afinal, isso parece mesmo a posição de Luc Ferry, sempre convocando teorias a confrontar, para fazer jorrar nova ideia, ponderando aqui, contra-argumentando ali, para chegar numa conclusão ponderada: sim renova minha confiança no novo, mas teremos que ficar vigilantes criando regulação.  Ferry está preocupado com a possibilidade de elaborar um discurso justo, não se satisfazendo com respostas prontas, sempre  visando a elaborar algo que se aproxima de uma tentativa de apontar uma verdade.

Nesse caso ele é mesmo um filósofo. Mas não sem mãos. “O Kantismo tem mãos puras, dizia Peguy, mas não tem mãos”. Ferry já foi ministro e se confrontou com as dificuldades de implantação de ações transformadoras.

Por isso Ferry interessa os psicanalistas. 

Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, psicanalista e membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana.

Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 169 – 21 de outubro de 2016

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