A surpresa de uma visita: não recuar frente à aposta no desejo 07/04/2014

Por Claudia Fabiana de Jesus

Você apostou em mim no primeiro dia em que me atendeu e eu não sabia o porquê e isso fez com que eu acreditasse em mim… precisava voltar e fazer esta visita.

Esta semana, recebi a visita de uma pessoa que encerrou seu tratamento, cuja duração foi de um ano e nove meses, há três anos. Nesses quatorzes anos de acompanhamento psicanalítico com pessoas que apresentam sofrimento com o abuso ou dependência de substâncias psicoativas, mais uma vez, surpreendi-me com a capacidade do ser humano fazer suas escolhas não se segurando na garantia do Outro e, sim, a partir de si mesmo e do modo como se mantém responsável no seu desejo e autocuidado.

O contato com esse paciente possibilitou-me repensar ideias prontas no campo da toxicomania, no que se refere à concepção de que esse é um sintoma “incurável”, ou que a pessoa depende preponderantemente da família para que o tratamento dê certo ou, ainda, ideias acerca da figura do idoso na sociedade atual, a partir das quais se entende que lhe resta ficar dependente de um serviço de saúde para manter-se abstêmio.

O referido paciente morava na rua, não tinha familiares, não casou, não teve filhos, não tinha nenhuma rede de apoio, estava com dificuldades significativas de saúde (problemas na coluna, na visão, tinha retirado um rim), tinha um histórico crônico de abuso de álcool e crack. Contou-me que sua intenção era romper com a própria vida. Ele ficou sabendo do atendimento para toxicomania e veio conhecer meu trabalho, sem muitas expectativas. Realizei seu acolhimento, apostei no vínculo e na consecução do seu tratamento.

Gradativamente, ele foi realizando mudanças em diferentes áreas de sua vida. O tratamento psicanalítico é sempre sem garantias, ainda mais, nesse caso, apostar no ser humano em situações limites, diante das quais se apresentavam sinais tão severos de autodestruição. Quando o conheci, sustentei meu desejo de analista e ele me possibilitou uma abertura para aquilo que eu não sabia que estava por vir. O paciente aderiu ao tratamento, alterou seu campo vivencial e social, conquistou trabalho, salário e moradia, voltou a cuidar de sua saúde de forma geral, teve mudanças na relação com a profissional de saúde de referência e demais membros da equipe. Passou da resistência à entrega afetiva. Houve uma considerável redução dos danos pessoais, posteriormente, a abstinência e a manutenção da mesma.

Ele saiu dos rótulos significantes: dependente de drogas, morador de rua, idoso; a ponto de surpreender-se com as próprias mudanças. Inventou novos modos de ser e fazer na vida, inclusive com relação ao amor dispensado aos animais de estimação. Ele e eu, não entramos nos protocolos e na ideologia discursiva da qualidade de vida apregoada pelos serviços de saúde, que se configuram como um bombardeio disciplinar: “você tem que ter espaço de lazer”, “fazer parte de grupo da terceira idade”, entre outras tantas condutas comportamentais. Ele respeitou aquilo que tinha haver com o seu modo singular de ser e se sustentou nessa escolha.

Vali-me da formulação clínica de Jorge Forbes segundo a qual é indicado ao psicanalista acolher, sem resignação e sem compadecimento, o insuportável de cada um que o procura, intervir de forma a esvaziar a consistência dos discursos e diferentes imperativos e modificar diagnósticos, prognósticos e a direção do tratamento. 

Diante do tratamento psicanalítico, ele não tinha onde se segurar a não ser nele mesmo e a partir de seu desejo de mudar. E assim ele o fez. Na visita, veio agradecer e me disse: “Você apostou em mim no primeiro dia que me atendeu e eu não sabia o porquê e isto fez com que eu acreditasse em mim… Precisava voltar e fazer esta visita”.  

Esse caso ressalta a importância da transferência, a aposta naquilo que não se sabe e na sustentação do tratamento a partir do desejo do analista. É fundamental que os serviços de atendimento foquem na saúde e não na patologia, que estejam abertos para as desconstruções necessárias a partir do que os novos sintomas, novos modos de expressão do sofrimento subjetivo chamam à reinvenção da clínica. Foi a minha aposta neste caso. Nessa experiência aqui contada, sou também grata a esse encontro clínico e a visita foi, novamente, uma surpresa.

Claudia Fabiana de Jesus é psicóloga, mestre em Psicologia da Saúde.