Por Italo Venturelli
Nasceu no dia de Santa Rita e sua mãe sempre lhe dizia que ela era uma pessoa escolhida por Deus para fazer o bem
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Chico Buarque
É comum crescermos na ilusão de que o outro pode sempre nos salvar e vivermos em demanda permanente, esperando alguma coisa de alguém. Nossas histórias são ficções criadas por nós mesmo. O processo de análise permite o momento de ver, o tempo de compreender e um instante de concluir, abandonando etiquetas e lugares recebidos do outro que nos nomeou de acordo com o seu desejo. No caso que segue, eis uma ilustração da forma como as palavras alienantes vindas do outro marcaram o corpo e a identidade de uma pessoa.
Rita Maria de Jesus veio ao meu consultório devido convulsões de difícil controle. Chegou carregada pelo esposo e pela mãe. Face pálida, cabelos escorridos, sem maquiagem, olhos cerrados, mal conseguia sentar na cadeira. Foi colocada na maca. Histórico de várias internações devido a convulsões contínuas.
Apresentava várias marcas pelo corpo fruto de quedas, tombos e algumas queimaduras nas mãos. Familiares traziam a extensa lista de medicações que Rita utilizava, mas mesmo assim, ela tinha crises todas as semanas. Ouvi da família a seguinte frase-súplica: “O senhor é nossa última esperança!” Talhando minha escuta com o bisturi psicanalítico, ouço sob o viés da curiosidade analítica e de quem não pode compreender e acolher a demanda movido pelo furor sanandis, postura a ser evitada pelo clínico, tal como alertou Sigmund Freud.
Solicitei alguns novos exames, em locais confiáveis. Tomografia de crânio normal. Eletro encefalograma com atividade irritativa difusa, tipo ponta, onda três ciclos por segundo. Os exames mostraram: Rita realmente apresentava um tipo de epilepsia que nem sempre é fácil de controlar as crises. Ajustei a medicação e marquei retorno em 15 dias.
Passados apenas três dias, lá estava Rita novamente com convulsões, sendo atendida no pronto-socorro. Marido, mãe e vizinhos apavorados com medo de uma patologia ainda mais grave. Acionado, compareci ao hospital. Encontrei a paciente desacordada, com ferimentos na língua e havia urinado na roupa. Diferentemente de uma conversão psicomotora, esses sinais são de nítida crise convulsiva generalizada. Solicitei, então, nova tomografia e tudo normal. Pedi exames de sangue para ver se havia alguma infecção, e, nesses casos, é sempre indicado um estudo sobre possível gravidez. Enfim, pedi uma dosagem sorológica das medicações prescritas. Qual minha surpresa? O resultado que já intuía: medicações INDETECTAVÉIS!!!
Rita estava “roubando no jogo”. O marido queria matá-la. A mãe desmaiou. Os médicos do pronto-socorro estavam “fulos” da vida. Eis aquele silêncio que só suporta quem já esteve por anos em um divã. Rita apresentava um tipo de epilepsia que se não medicada teria convulsões; mas por que não tomar as medicações? Pedi para ouvi-la separadamente.
Na primeira entrevista, ela falou do mito da escolhida. Disse que nasceu no dia de Santa Rita e que sua mãe sempre lhe dizia que ela era uma pessoa escolhida por Deus para fazer o bem. A mãe, que era solteira, falava do pai de Rita como um bandido. Desaprovava o casamento da filha. “Ele é igual ao meu pai, homem da vida”, falou referindo-se ao marido.
Rita contou que detestava sexo. “Quando vou ter relações com meu marido, fico segurando um terço na mão direita”. Usava anticoncepcional e camisinha para não engravidar. O sexo era visto como coisa impura.
A razão pela qual não tomava as medicações era porque “remédio é coisa dos homens e eu vou sarar só com minhas rezas”. Respondi: “Ah não vai não. Nem com reza brava você sara! O que você acha que tem?” Respondeu-me: “Desmaios, porque não sou pura como Maria”. O benefício secundário dos sintomas da epilepsia, daí não aderir ao tratamento, vinha para responder a arquitetura da neurose histérica.
A mãe se chamava Ana Maria de Jesus. Seu pai, que não chegou a conhecer, José. Quando do abandono do namorado, pai da menina, a mãe fez promessa que com a filha seria diferente. Indaguei: “Se a promessa é dela, por que você a cumpre? ” “Porque sou escolhida, já falei” – respondeu. Ao que eu lhe disse: “escolhida de quem? De Deus ou da sua mãe?”
Durante os três primeiros meses, Rita teve atendimentos duas vezes por semana. Usou as medicações regularmente. Não teve mais crises convulsivas. Em novos testes, evidenciava uso e doses adequadas da medicação. Levada ao divã recentemente, em uma sessão, levantou-se, olhou para mim e disse: “daqui pra frente: é só Rita!”.
A mãe marcou uma consulta e reclamou da filha que não ia mais à igreja e que preferia passear com o marido. “O que fazer agora que ela não vai mais comigo à igreja? Respondi: “Ana Maria de Jesus é a senhora. Ela é ‘só Rita’. A promessa é sua. A senhora tem a opção de rever suas escolhas e de falar sobre seus desejos”.
Italo Venturelli é neurocirurgião, psicanalista e diretor técnico do Hospital Bom Pastor em Varginha, MG.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.