Por Dorothee Rüdiger
Em São Paulo, sair da exibição para o contato entre as pessoas é a tendência do novo tom da mobilização urbana
Olhando pelo vidro do carro deparo-me com uma paisagem triste. E não é exatamente a chuva que embaraça a vista. É, sim, a sensação de atravessar um cemitério de automóveis, no qual nossos sonhos de uma vida mais rica e livre tornaram-se sucata. Isso porque nossa cidade, que ainda há poucas décadas vivia a realização de um desejo de progresso, hoje, quer acordar do pesadelo de se ver parada em meio a um ferro velho de automóveis. Destinados a se mexerem sozinhos, já que são automóveis, hoje, não se mexem mais, nem para lá, nem para cá.
O crescimento econômico dos últimos anos nos brindou com bens de consumo. São frutos de uma política de redução de impostos na aquisição de bens duráveis que visa a proteger nossa economia das consequências de uma crise mundial que insiste em não passar. Mas, a alegria de, por exemplo, ter um carro na garagem reduziu-se a tão somente ter um carro. Onde? Na garagem!
“Pra quê tanto céu, pra quê tanto mar?”, lembra a música “Inútil paisagem” de Tom Jobim, interpretada, em 1974, por Elis Regina. O que me vale um automóvel, se estarei na média de duas horas e quinze minutos, como quer a estatística, largada a meus devaneios enquanto estou parada no trânsito, dia após dia?
Como eu, muitos paulistanos, hoje, se colocam essa pergunta e estão dispostos a deixarem seus carros para usarem o transporte público, apesar de sua merecida má fama.
Em tempos pós-modernos, a exibição de símbolos de status, como, por exemplo, um automóvel, não conta mais tanto quanto o desejo de encontrar-se com as outras pessoas. De repente, desfilar com os carros para cima e para baixo nas avenidas da cidade não tem mais graça. Em compensação, os bares e as praças fervilham de gente que quer encontrar gente.
Usar os ônibus que percorrem os corredores recém-criados ou tradicionais, atualmente, agrada a quase 80 % dos paulistanos que, até há poucos anos e, talvez até há poucos meses, torciam o nariz diante do transporte público. Hoje, não é mais o luxo das limusines inutilmente paradas que conta. Ter tempo, como diz Domenico De Masi, é o maior luxo pós-moderno. Tempo para ver os amigos, tempo para jogar conversa fora, para dar um beijo nos filhos e contar uma estória antes deles dormirem, para terminar uma refeição com um cafezinho antes da retomada do trabalho: que precioso!
Mas, como não pode deixar de ser, o luxo tem um custo. Implica uma escolha difícil de fazer, ainda mais para quem recentemente adquiriu o bem de consumo dos sonhos. No entanto, mudando de atitude e usando cada vez mais frequentemente os corredores de ônibus, quem sabe, nós paulistanos realizaremos uma verdadeira revolução. Essa revolução, literalmente, será “tomar o tempo”, arrancá-lo da lógica do capital para quem Time is Money e para quem produzir um monte de sucata gera lucro imediato. Todos ganharão o que não tem valor expresso em dinheiro. Será a revolução do luxo do tempo que dará nova vida à nossa cidade.
Dorothee Rüdiger é psicanalista, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo