Por Lauro Joppert Swensson Júnior
Não podemos retroceder para resolver o paradoxo entre a lei, que garante a impunidade, e o desejo por justiça das vítimas da ditadura militar
Certas datas comemorativas podem servir para que feridas aparentemente fechadas sangrem novamente. No dia 31 de março deste ano, comemoraram-se os 50 anos do golpe de Estado, que, chamado de “Revolução” pelos militares, levou o Brasil a uma ditadura civil-militar, que perdurou por 21 anos. Após a redemocratização do Brasil, é possível verificar importantes avanços, no sentido da reparação financeira e moral às vítimas da repressão política. Nesse sentido, são importantes os trabalhos da Comissão da Anistia e de várias Comissões da Verdade instauradas no país, cuja tarefa é contribuir para o esclarecimento de episódios obscuros dos “porões da ditadura”. Apesar dos avanços obtidos nessas comissões, permanece aberta a questão de saber se os agentes estatais, que praticaram graves violações de direitos humanos – como torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados – devem ou não ser submetidos a um processo penal e, caso condenados, receber uma pena.
Boa parte das discussões concentram-se atualmente no exame da validade da anistia aos agentes da repressão estatal, tida como o principal obstáculo jurídico – juntamente com a prescrição – para a responsabilização penal dos autores da criminalidade da ditadura. Anistia penal é um ato estatal, geralmente do poder legislativo, através do qual o Estado renuncia à imposição de sanções a certas categorias de pessoas, ou extingue as sanções já pronunciadas.
Segundo interpretação dos tribunais brasileiros e do próprio Supremo Tribunal Federal, a concessão da anistia pela Lei da Anistia de 28 de agosto de 1979, baseou-se no critério da motivação política dos atos, independentemente da identidade do agressor e do bem jurídico atingido. Nesse sentido, teriam sido anistiados não só os presos e exilados por crimes políticos, mas também todos os agentes públicos e colaboradores do regime militar que participaram da repressão política. A lei da anistia teria servido, em outras palavras, para suturar uma ferida aberta na sociedade brasileira pelo golpe militar e a consequente resistência armada.
Mas será que essa anistia não pode ser revogada, isto é, destituída de validade? Existe uma reivindicação nesse sentido, especialmente por parte das vítimas. Para estas, a anistia concedida aos agentes do Estado poderia ser considerada inválida. Como ensinar às gerações mais jovens que, no Brasil, a impunidade não é a pedra angular da nação? Como demonstrar que aqueles que detêm ou detiveram o poder e dele abusaram sempre serão responsabilizados por seus delitos? Ou será que devemos nos conformar que, diante da comprovação de que crimes graves foram praticados, não há nada que possa ser feito pelo direito brasileiro? A partir desse ponto de vista, aqueles que praticaram delitos atrozes no exercício da repressão política estatal deveriam, sim, “pagar” pelos seus crimes, já que a impunidade concedida pela anistia aos agentes estatais que praticaram graves violações de direitos humanos é injustificada e injusta, devendo, por esses motivos, ser a anistia abolida do ordenamento jurídico.
Contra os que querem abolir a anistia concedida em 1979, existe a argumentação, especialmente por parte dos juristas, de que a anistia concedida não pode ser revogada, uma vez que sua eventual revogação equivaleria à imposição retroativa de penalidades. E esta a própria Constituição brasileira em vigor proíbe. O Estado, tendo renunciado à imposição de sanções a certas categorias de pessoas através da concessão da anistia, não pode voltar atrás na sua decisão, no sentido de permitir uma penalização retroativa. Decidir, portanto, pela invalidade da lei de anistia aos agentes da repressão política da ditadura, trinta e cinco anos após a sua promulgação, significaria incorrer em inevitável violação ao princípio da legalidade e em franco desrespeito à segurança jurídica e ao Estado de Direito. Revogar a anistia significaria, conforme diz o jargão popular, “dar um tiro no pé”, por flexibilizar-se, com isso, uma das principais garantias do cidadão contra o poder punitivo do Estado: a lei.
Leis são assim: decididas em meio aos acontecimentos políticos. Muitas vezes, constituem uma herança maldita para as gerações posteriores que podem estar de acordo com o que o jurista Nilo Batista, quem teve, em 1979, a coragem de manifestar-se publicamente contrário a concessão da anistia aos agentes do Estado, e escreveu em 2010: “Lutar por essa tese em 1979, como tantos brasileiros fizemos, era compreensível: ainda havia sangue no piso dos porões, lutava-se pela restauração da legalidade democrática. Trinta anos depois, durante os quais a interpretação da lei – tanto nas escassas ocasiões em que foi o Judiciário provocado quanto na continuada omissão das agências que devem atuar de ofício, como o próprio Ministério Público – invariavelmente reconheceu que a anistia alcançava os torturadores, a luta pela tese, paradoxalmente, ameaça a legalidade democrática. Errávamos em 1979 no calor dos acontecimentos, mas hoje se erra a sangue frio”. Mas nem por isso, dá para retroceder para resolver o paradoxo entre a lei, que garante a impunidade, e o desejo por punição ou, segundo as vitimas, por justiça. Talvez estivesse na hora de os juristas incluírem em suas reflexões a tese de Sigmund Freud, lançada em sua obra O mal-estar na civilização, de que o conflito entre a lei e o desejo não se resolve, mas, quem sabe, pode servir às gerações futuras como ponto de partida para a busca de soluções inusitadas.
Lauro Joppert Swensson Júnior é mestre em direito pela Universidade Metodista de Piracicaba e doutorando da Goethe- Universität em Frankfurt am Main/ Alemanha.