Por Marcelo Veras
Deletar é algo muito novo. A tecla Del está mais próxima da foraclusão do que do recalque
Em um mundo onde tudo já foi contado, é difícil encontrar significantes novos, sobretudo quando estes marcam as relações e rupturas afetivas. Entre os psicanalistas falamos tanto de singularidade, de que cada caso é único, que esquecemos o quanto os humanos podem ser repetitivos e previsíveis. Com o passar dos anos um bom clínico acaba se tornando um tipo de especialista em detectar casos típicos. Por mais que lutemos a favor do caso único, não podemos deixar de ver a insistência gritante com que alguns personagens próximos ao clichê chegam no consultório. A ciumenta, o indeciso, o narcísico, todos fazem parte de uma lista de frequentadores assíduos de nossa casuística clínica. Ao seu modo, encontramos na leitura de Lacan um pouco dessa tese na referência que faz à tradição moralista de um La Rochefoucauld, por exemplo. Antes de Freud e Lacan, é possível encontrar nas máximas de La Rochefoucauld sobre o amor próprio, uma verdadeira tipologia do ser humano. Freud, igualmente, muito falou da psicologia do judeu, em seu livro sobre os chistes, apontando os traços comuns que faziam do judeu quase um tipo clínico.
Contudo, naquilo que se repete secularmente, alguns significantes novos parecem ter emergido por conta de situações que, até então, não faziam parte da história. São palavras ou expressões que irrompem para dar conta de algo nas relações entre as pessoas e que não faziam parte do léxico repetitivo da clínica cotidiana. Lembro do estranhamento que me causou o momento em que ouvi dos adolescentes, pela primeira vez, a expressão deletar para falar de suas relações afetivas. Deletar é algo muito novo. A tecla Del está mais próxima da foraclusão do que do recalque. Sou de um tempo em que, após apagar com a borracha uma frase na redação, era possível ainda ver as marcas do lápis no papel. Ou seja, o papel guardava as marcas do que havíamos escrito e também do que havíamos apagado. Tal qual o retorno do recalcado, as marcas no papel eram como cicatrizes de uma escrita que deu errado, ou foi trocada, mas que nos recordava sempre que algo havia sido suprimido. Nas últimas décadas o computador deixou de ser um aparelho de ficção científica para se tornar o eletrodoméstico mais importante da casa. Aí tudo mudou. O texto, escrito no word, está sempre perfeito e formatado, os erros são deletados sem rastros aparentes. Seguindo a mesma lógica, os jovens rapidamente, a partir dos anos noventa, levaram a expressão deletar para seus relacionamentos afetivos.
Em seguida surgiu um significante novo para dar conta dos encontros que prescindiam do futuro, eram puro presente, contabilizados um a um, o significante “ficar”. Ficar com alguém tornou-se uma aproximação de corpos sem a necessidade de uma narrativa amorosa como complemento. Já as narrativas amorosas também foram subvertidas pela desvinculação do amor, nas relações que ainda ousaram subsistir no mundo atual, com o futuro sem fim. Nada melhor do que o sintagma de Baumann “amores líquidos” para explicar essa situação.
Impossível dissociar esses significantes das tecnologias que aportaram um novo modo de conexão entre dois seres falantes. Até o início do século XX os seres se conectavam com seus corpos e, quando distantes, com suas escritas. Havia nesse sentido certa clivagem temporal entre a voz e a escrita. A voz no tempo real e a carta como uma escansão a ser rasgada, queimada, idolatrada ou retribuída. Aos poucos, a imagem entrou nessa relação. Inicialmente com a fotografia, depois com pequenos registros filmados, o poder das imagens cresceu de modo assombroso e se interpôs entre o corpo e a escrita, criando assim um novo baile de máscaras. O baile atual em nada se assemelha ao de Shakespeare. Alguns vão para o baile para encontrar o amor de suas vidas, outros apenas um sexo meio ruim, daqueles que após o gozo a única vontade que se tem é de fugir correndo antes que o parceiro acorde. O fato é que rapidamente o ambiente virtual deixou de ser um ambiente de desejo para ser um ambiente de demanda pulsional.
Onde mais se percebe essa transformação é justamente nos diversos canais virtuais propostos para encontros. Cito alguns nomes que ouvimos com frequência: ParPerfeito, Tinder e Ashley Madison. Isso sem falar nos gigantes Instagram e Facebook. Muitos ainda devem se lembrar do escândalo que culminou na demissão de Noel Biderman, CEO da Ashley Madison, quando o vazamento de dados de milhões de frequentadores do site deflagrou um pânico de proporções planetárias. É como se subitamente todos os participantes do baile perdessem suas máscaras e revelassem a verdadeira identidade.
Como podemos tratar essa migração, no ambiente virtual, do campo do desejo para o campo da demanda? É claro que uma separação radical não existe, mas podemos pensar com Lacan que o desejo é sempre o desejo de outra coisa e a demanda é sempre uma demanda do mesmo. Enquanto o primeiro se funda na falta, o segundo se funda na ilusão de satisfação. Digo ilusão para recordar a célebre expressão freudiana de satisfação alucinatória do desejo, que apesar do nome se aplica muito mais à pulsão do que ao desejo. Desse modo, o problema do baile de máscaras virtual é que se entra em uma festa onde todos usam uma máscara igual e não máscaras diferentes. Onde deveria haver encontro com o outro é como se o encontro fosse na verdade um baile de pulsões. E isso respeitando a sex ratio, das fórmulas de sexuação lacanianas. Homens buscando o objeto e seus fetiches, as mulheres encontrando a desilusão de não lograrem, nem mascaradas, descobrir o charme que faz os homens preferirem a outra.
Tudo isso para dizer que chegamos a mais um significante novo marcando as relações, o vácuo. “Deu vácuo”, ouvi essa expressão recentemente de uma interlocutora que me dizia que os homens começavam a conversa no aplicativo e, quando as coisas pareciam se enganchar, eles simplesmente desapareciam. Nem justificativas, nem mesmo um emoticon de bye-bye. Um ping desesperadamente, para muitas, sem pong. As relações já estavam líquidas, passíveis de serem deletadas, “ficar” já era mais importante que perdurar, e agora elas mostram o vazio perfeito, nada mais que um vácuo. O vácuo é o espaço sem substância alguma, dar “um vácuo” é mostrar que não havia nada por trás da máscara, o puro vazio. Para o sujeito feminino significa a própria derrisão fálica, desconstrução total da história de amor inventada, enigma do feminino deixado sem respostas, sem passado nem presente, apenas o puro éter. Nem mesmo um Bad Romance, pensando na música de Lady Gaga.
Para o sujeito masculino, ainda pensando nas fórmulas da sexuação, o vácuo parece ter uma força de atração pulsional perfeitamente compatível com o objeto despido de seus semblantes. Eles não vão dizer que se decepcionaram por não achar o amor de suas vidas, já que nunca foram ao site atrás disso. Só que, capturados pelo poder do vácuo, eles não encontram nenhum amor em lugar algum. Estou sendo extremista? Há exceções. Se nem a máquina pneumática de Boyle ou as novas bombas à vácuo conseguiram reproduzir o vácuo perfeito é porque os humanos ainda não produzem o real puro, sem restos.
Tomemos o título de um destes sites de relacionamento, o ParPerfeito. No seu próprio nome ele tenta inscrever a relação sexual que não existe. Talvez se ele se chamasse ParImperfeito estivéssemos mais próximos de um final feliz para seus usuários. Por hoje é só. Vácuo
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise
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