A razão freudiana 27/03/2014

Por Helainy Andrade

Uma das grandes contribuições freudianas é que o mais íntimo da experiência humana está ligado à nomeação do desejo

Nas redes sociais e na imprensa circulou recentemente uma matéria intitulada: “Teoria de Freud é respaldada por escâneres cerebrais”. Cientistas da King’s College e da Universidade de Melbourne afirmam estar convencidos e dão razão ao psicanalista ao apontar que as lembranças reprimidas são a causa da histeria. Muitos vibraram e suspiraram aliviados; passados mais de 100 anos, finalmente o veredicto: a ciência reconhece a razão freudiana! Ora, ora, o próprio Freud foi além dessa dita razão! Triste de quem acredita que as coisas mais fundamentais da vida são da ordem do ver pra crer!

Utilizando-se de scanners, os cientistas visualizaram o cérebro de pacientes portadores de conversão. No momento em que são levados a falar de seu passado, as imagens de ressonância magnética revelam uma mudança de fluxo sanguíneo para áreas específicas do cérebro: no caso dos pacientes com conversão, a área mais irrigada é o córtex pré-frontal, enquanto que nas pessoas “saudáveis”, o hipocampo é que é a parte do cérebro responsável pela formação das lembranças. Daí, a conclusão científica de que uma experiência traumática afeta o corpo de forma a alterar seu funcionamento normal. Dito de outro modo: o trauma cria uma outra fisiologia.

As desordens apresentadas pelas queixas e sintomas femininos são muitas vezes interpretadas como “piti”. Será que encontrarão categoria nosológica para tal desordem? Não será surpresa se o próximo passo for a busca de uma droga que possa corrigir, de forma genérica, esse desvio de função. Isso poderia ser conseguido deletando de vez a memória indesejada ou, quem sabe, forçando que o fluxo sanguíneo fique no hipocampo, ou erradicando por meio medicamentoso a insatisfação feminina. Por esse caminho, surgirão soluções ortopédicas, totalitárias e pouco criativas.

Especulações científicas fantásticas à parte, o fato é que estudos como esse realçam a genialidade de Freud. Ele, sendo médico neurologista de formação, debruçou-se sobre o que até hoje recebe certo desdém da medicina, para, em seguida, criar um tratamento para legitimar o desejo humano. Descobre que o corpo não respondia de forma padronizada as vias anatômicas fisiológicas. Entregou-se ao trabalho de construir um aparato para tratar aqueles de quem não subestimou o sofrimento. Consentiu com um saber que não se sabe. E, nesse propósito, serviu-se do que há de mais humano, a palavra. Apostou que se há uma palavra que nos adoece, também há outra, e no limite e ausência desta, a nossa “cura”. À frente de seu tempo, Freud não esperou para comprovar localização da histeria no cérebro. Ainda bem, nesses anos todos, quantas de nós ainda estaríamos nos contorcendo e nos debatendo. Isso sem falar em outros tantos sofrimentos que puderam ser tratados a partir dessa escuta inaugurada por ele.

Uma das grandes contribuições freudianas  é que o mais íntimo da experiência humana está ligado à nomeação do desejo. Freud aponta para a perda da esperança de tudo saber. Há algo que não podemos falar e que escapa à captura significante. A palavra gera o mal-entendido e o silêncio diz do essencial. A lógica da psicanálise é a incompletude, motor e convite à invenção. Essa dimensão humana,  scanner nenhum pode capturar. Ufa, ainda bem!

Helainy Andrade é psicanalista em Varginha-MG.