Por Dorothee Rüdiger
Homens e mulheres sensíveis conseguem fazer com que esses achados acidentais façam nascer algo novo, algo que renda uma nova história
Ela queria falar. Nos anos 80 do século XIX, numa sociedade que tratava as mulheres como infantis e, portanto, “sem fala”, Anna O. pediu para falar. Inventou a talking cure, a cura pela palavra, para livrar-se de uma paralisia no braço direito, da dormência nas extremidades, da perturbação do movimento de seus olhos, da tosse nervosa e da hidrofobia sem explicação. Estranhamente, ela só falava inglês. Não queria mais falar alemão. Todos os dias, à tarde, entrava em um estado hipnótico. Era bem na hora em que seu médico, Josef Breuer, ia visitá-la. Esse médico, acostumado a tratar os males do corpo, era capaz de ouvir pacientemente suas estórias. Ele percebia que a paciente ao falar sobre o pai, a mãe, a governanta inglesa, seu cachorro e a vida, desvendava e, ao mesmo tempo, se livrava de seus conflitos internos. O método catártico funcionava. Mais ainda. Ouvindo as cenas do “teatro particular” de Anna O., Breuer descobriu que existia uma double conscience: uma que consistia em fantasias, devaneios e estórias familiares fantásticas, e a outra na banalidade do ser normal.
Anos mais tarde, Sigmund Freud comentou a experiência de Anna O. e de Josef Breuer em sua primeira aula Sobre Psicanálise, em Worcester, Massachusets:
“Se há um mérito no fato de ter chamado a psicanálise à vida, esse mérito não é meu. Não participei de seus primeiros passos. Era estudante preocupado com meus exames finais, quando um outro médico vienense, Dr. Josef Breuer, aplicou esse procedimento pela primeira vez numa moça acometida pela histeria.”
Amigo de Josef Breuer, o jovem médico Sigmund Freud passou a aplicar o “método breueriano” em sua clínica. Hipnotizava suas pacientes histéricas e as deixava falar. Assim, apostava Freud, poderiam livrar-se de suas reminiscências do passado. Num dia de verão de 189*, Freud resolveu passear nas montanhas para “esquecer por um tempo a medicina e principalmente as neuroses”. Eis que uma voz feminina lhe chamou: “O Senhor é um doutor?” E Freud se viu novamente desafiado pela neurose, desta vez a 2000 metros de altura em meio aos Alpes austríacos. “Do que você sofre?” – perguntou. Ouviu da moça, a quem resolveu chamar de “Katharina”, um relato de seus sintomas de angústia: falta de ar, pressão nos olhos, vertigem. Os sintomas no corpo eram acompanhados por um fantasma, uma máscara. Freud perguntou-se:
“Será que eu deveria fazer a tentativa de uma análise? Eu não ousaria transplantar a hipnose a essa altura das montanhas. Mas, talvez consiga realizá-la através de uma simples conversa”. E escreveu: “Finalmente, só me restou adivinhar. Angústia em moças tão jovens eu costumava reconhecer como consequência do horror que acomete uma alma virgem quando o mundo da sexualidade se abre a ela pela primeira vez.” Assim, num passeio, Katharina revelou a Freud que tinha sofrido, aos 14 anos de idade, o assédio sexual por parte de seu tio. A “conversa” nas montanhas teve efeitos. Katharina livrou-se dos sintomas. Em 1924, Sigmund Freud sentiu a vontade de revelar a verdadeira identidade de quem molestou Katharina, em sua adolescência. Não era seu tio, mas seu próprio pai. Talvez por essa experiência clínica a 2000 metros de altura, Freud deixou de hipnotizar seus pacientes ainda nos anos 90. Encontrou na livre associação, aplicada na ocasião do passeio com Katharina, um método mais eficaz de psicanálise.
Poucos anos depois, Freud fez outra descoberta que mudou os rumos da psicanálise. Em uma carta a seu amigo, Wilhelm Fliess, fez uma confidência reveladora:
“Caro Wilhelm!
[…] Quero sem rodeios contar-lhe um grande segredo. Algo sobre o qual as fichas começaram a me cair nos últimos meses. Não acredito mais nas minhas neuróticas. […] As intermináveis decepções na tentativa de levar a um bom termo uma análise, a debandada de pessoas que eu achava aptas para ela, e a ausência de sucesso pleno me levaram a explicações diferentes daquelas, nas quais eu era acostumado. […] Surpreendeu-me que em todos esses casos o pai era acusado de ser perverso, … apesar de que a perversão contra crianças não seja tão frequente assim. … Cheguei à conclusão de que no inconsciente não há um sinal da realidade e que consequentemente não dá para distinguir a verdade duma ficção carregada de afeto. […] Estou disposto a abrir mão de duas coisas: da solução definitiva de uma neurose e da constatação segura de sua etiologia na infância.”
No entanto, qual teoria Sigmund Freud iria colocar no lugar da “teoria da sedução”? Freud escreveu, algumas semanas depois, em outra carta para Wilhelm Fliess: “Encontrei a paixão pela mãe e o ciúme contra o pai também em mim mesmo e creio que isso, sim, seja um acontecimento comum a todos na primeira infância. … Se for isso, entende-se o poder impactante do Rei Édipo. …. Cada um dos ouvintes [da tragédia] era uma vez, no fundo e na fantasia, um tal de Édipo. Cada um se assustaria com a realização desse sonho trazido à luz da realidade apesar de essa carga de recalque que separa seu estado infantil de seu estado contemporâneo.”
A história é feita de encontros e desencontros. Há achados no caminho que muitas vezes não se encaixam nas ideias que fazemos sobre o mundo. Homens e mulheres sensíveis conseguem fazer com que esses achados acidentais façam nascer algo novo, algo que renda uma nova história. Assim nasceu a psicanálise. Acidentalmente, Anna O. sugeriu a Josef Breuer a cura pela palavra e Josef Breuer encontrou o inconsciente. Foi por acaso que Sigmund Freud descobriu que uma análise dispensa a hipnose e pode ser feita numa simples conversa. Foi desconfiando das estórias de seus pacientes que Freud abandonou a teoria da sedução. Foi confessando seus desejos mais íntimos que ele achou aquilo que, durante décadas, seria a chave de compreensão do inconsciente, ou seja, o Complexo de Édipo.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo