Por Dorothee Rüdiger
Contra a capacidade da religião de “encontrar uma correspondência de tudo com tudo” a psicanálise aposta na dúvida
A religião está triunfando. Quem acompanha atenciosamente o noticiário, percebe sua onipresença na mídia. Facções políticas partidárias, exércitos e até um novo Estado forjaram-se em nome de Deus. Pretendendo levar muitas vezes a ferro e fogo sua fé para os descrentes. Estão lenta-, mas gradualmente transformando o cenário político e social da globalização.
Quem acha que política e religião se entrelaçam apenas no Oriente está enganado. Argumentos religiosos fundamentam a Proposta de Emenda Constitucional 171/93 da redução da maioridade penal de autoria do deputado Benedito Domingos . A proposta foi aprovada na semana passada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados fazendo referências ao reis Davi e Salomão e ao Profeta Ezequiel . Outro projeto polêmico pretende modificar o artigo primeiro da Constituição. Se a proposta do Cabo Daciolo do Rio de Janeiro vingar, o povo, até agora soberano do Estado brasileiro, entregaria o seu poder nas mãos de Deus, uma das razões pelas quais o partido do deputado, o Partido Socialismo e Liberdade, o suspendeu.
Jacques Lacan desconfiava que haveria esse “triunfo da religião”. Vale reler o que diz durante a conferência de imprensa em Roma no dia 29 de outubro de 1974. É assustador: “Se a religião triunfa, como é bem provável, será sinal que a psicanálise fracassou.” Tempos difíceis para a psicanálise.
No entanto, a psicanálise é o sintoma dos tempos difíceis. Ela está posta por Sigmund Freud ao lado dos dois ofícios impossíveis, da política e da educação. Todos os três ofícios lidam com a insuficiência humana. Mas, enquanto educadores e políticos, desde tempos remotos parecem saber muito bem o que querem , isto é, fazer valer sua visão do homem, a psicanálise lida com aquilo que Sigmund Freud chama de castração e o que Jacques Lacan chama de o Real: os desafios da vida e da morte em sociedade. A psicanálise não tem como oferecer remédios para a angústia diante do Real. Não tampa o buraco. Escuta seu silêncio diante do barulho das pulsões. A religião “pacifica os corações” , apazigua, enquanto a psicanálise veio para “trazer a peste” da dúvida.
Paz para comunidades afetadas pela violência . Quem não quer? Não é por um acaso que onde a violência se mostra mais cruel , ou seja, nos bairros pobres de São Paulo a Paris e Londres, brotam as comunidades religiosas. A religião tem a capacidade de dar um sentido, onde a ciência levou para a angústia do não sentido, diz Lacan. O sentido pode ser dado por um Deus benevolente que agrega as pessoas em busca de esperança e de saídas coletivas da crise.
No entanto, quando Deus entra no jogo do poder para fundamentar interesses políticos de quem quer se manter no topo da pirâmide social, a religião muda de figura. Torna-se uma militante versão do pai que busca estabelecer a ordem paterna. Entendida assim, a religião sanciona, torna inquestionável as ações de quem, em nome de Deus, está no poder.
As relações entre a religião e a psicanálise para Lacan “não são muito amigáveis”. Contra a capacidade da religião de “encontrar uma correspondência de tudo com tudo” a psicanálise aposta na dúvida. Ao invés de pregar a obediência incondicional aos mandamentos divinos para atravessar o deserto dos tempos difíceis, a psicanálise chama para a postura de cada um na procura por saídas inusitadas da crise. Posição difícil a sustentar, quando os remédios da fé oferecem sua cura milagrosa.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo