A psicanálise e o “triunfo da religião” 09/04/2015

Por Dorothee Rüdiger

Contra a capacidade da religião de “encontrar uma correspondência de tudo com tudo”   a psicanálise aposta na dúvida

A religião está triunfando. Quem acompanha atenciosamente o noticiário, percebe sua onipresença na mídia. Facções políticas partidárias, exércitos e até um novo Estado forjaram-se em nome de Deus. Pretendendo levar muitas vezes a ferro e fogo sua fé para os  descrentes.  Estão lenta-, mas gradualmente transformando o cenário político e social da globalização.

Quem acha que política e religião se entrelaçam apenas no Oriente está enganado. Argumentos religiosos fundamentam  a  Proposta de Emenda Constitucional 171/93 da redução da maioridade penal  de autoria do deputado  Benedito Domingos . A proposta foi aprovada na semana passada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados fazendo referências ao reis Davi e  Salomão e ao Profeta Ezequiel .  Outro projeto polêmico pretende modificar o artigo primeiro da Constituição. Se a proposta do Cabo Daciolo do Rio de Janeiro vingar, o povo, até agora soberano do Estado brasileiro, entregaria  o seu poder nas mãos de Deus, uma das razões pelas  quais o partido do deputado, o  Partido Socialismo e Liberdade,  o suspendeu.

Jacques Lacan  desconfiava que haveria esse “triunfo da religião”. Vale reler o que diz durante a conferência de imprensa em Roma no dia 29 de outubro de 1974.  É assustador: “Se a religião triunfa,  como é bem provável, será sinal que a psicanálise fracassou.”  Tempos difíceis para a psicanálise. 

No entanto, a psicanálise é o sintoma dos tempos difíceis.  Ela  está posta por Sigmund Freud ao lado dos dois ofícios impossíveis, da política e da educação.  Todos  os três ofícios lidam com a insuficiência humana. Mas, enquanto educadores e políticos, desde tempos remotos parecem saber muito bem o que querem , isto é, fazer valer sua visão do homem, a psicanálise lida com aquilo que Sigmund Freud chama de castração e o que Jacques Lacan chama de o Real: os desafios da vida e da morte em sociedade.  A psicanálise não tem como oferecer  remédios  para a angústia diante do Real. Não tampa o buraco. Escuta seu silêncio diante do barulho das pulsões.   A religião “pacifica os corações” , apazigua, enquanto a psicanálise veio para “trazer a peste”  da dúvida.

Paz para comunidades afetadas pela violência . Quem não quer? Não é por um acaso que onde a  violência se mostra mais cruel ,  ou seja, nos bairros pobres de São Paulo a Paris e Londres, brotam as comunidades religiosas.  A religião tem a capacidade de dar um sentido, onde a ciência levou para a angústia do não sentido, diz Lacan. O sentido pode ser dado por um Deus benevolente que agrega as pessoas em busca de esperança e de saídas coletivas  da crise.  

No entanto, quando Deus entra no jogo do poder  para fundamentar  interesses políticos  de quem  quer se manter no topo da pirâmide  social,  a religião muda de figura.  Torna-se  uma militante versão do pai que busca estabelecer a ordem paterna.   Entendida assim, a religião sanciona, torna inquestionável  as ações de quem, em nome de Deus, está no poder. 

As relações entre a religião e a psicanálise para Lacan  “não são muito amigáveis”. Contra a capacidade da religião de “encontrar  uma correspondência de tudo com tudo”    a psicanálise aposta na dúvida.  Ao invés de pregar a obediência  incondicional aos mandamentos divinos para atravessar o deserto dos tempos difíceis, a psicanálise chama para a postura  de cada um na procura por saídas inusitadas da crise.  Posição difícil a sustentar, quando os remédios da fé oferecem sua cura milagrosa. 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo