Por Dorothee Rüdiger
A lei prometia acabar não somente com a automedicação, costume muito comum entre os brasileiros, mas também obrigar uma série de profissionais ao encaminhamento feito por médicos
Foi por pouco. A presidente da República, que não tem poucos projetos sobre a mesa para dar conta de responder à onda de protestos das últimas semanas, acabou de sancionar uma lei que, mesmo sendo aprovada pelo Senado após 11 anos de debates, prometia, para variar, mais protestos. Antenada às ruas, a chefe de Estado vetou os nove pontos mais polêmicos de seu artigo. A Lei do Ato Médico pretendia deixar a saúde no Brasil, digamos, “com uma cara mais nórdica” e, com isso, mexer profundamente na cultura brasileira no campo da saúde. A questão, no entanto, é como essa lei que desenha a profissão do médico irá afetar a clínica psicanalítica no Brasil.
O que impressiona a quem chega ao Brasil, sendo estrangeiro do hemisfério Norte, é a maneira como os habitantes daqui se viram como podem em relação à saúde. Não correm ao médico, à maneira dos alemães, quando o primeiro espirro anuncia um resfriado. Vão à farmácia, se queixam com o farmacêutico de confiança, que, às vezes, nem farmacêutico é, e compram seus remédios contra o resfriado. Brasileiro, quando amanhece com dor na coluna, não vai a um ortopedista. Para quê? Procura, quando muito, um massagista ou fisioterapeuta para colocar o esqueleto no devido lugar. O médico é aquele profissional procurado quando “não tem outro jeito” ou quando se tem tempo de sobra para encarar a fila do pronto socorro. Há também os que gostam de “passar” pelo médico, onde já chegam devidamente automedicados e com a lista pronta de exames em punho. Nestes casos, resta ao profissional da saúde apenas “despachar”, se virar como for possível diante da precariedade do sistema de saúde pública brasileiro.
A nova lei prometia não somente acabar com o jeitinho da automedicação como sujeitar uma série de profissionais ao encaminhamento feito por médicos. Tomar agulhadas com um acupunturista? Tirar unha encravada com um podólogo? Pedir a tal da dieta para emagrecer para um nutricionista? Todos esses procedimentos dependeriam da prescrição médica, se fosse pela vontade do Legislativo. Na mesma seara, diagnósticos de doenças da pele feitos por enfermeiros seriam tão proscritos quanto os diagnósticos de depressão e de outras doenças mentais dados por psicólogos. Com a nova lei, a cultura do jogo de cintura em questões de saúde teria que se sujeitar aos ditames da lei e do CID 10, que regula diagnósticos e terapêuticas estabelecidos por um código transmitido, comme il faut, nas faculdades de medicina. No entanto, a cultura brasileira no campo da saúde, a precariedade do Sistema Único de Saúde (SUS) e, porque não, as ruas falaram mais alto.O cenário pouco deve mudar com a lei recém-sancionada.
Qual é, nesse cenário, o lugar da psicanálise? Há aproximadamente 45 anos, o psicanalistaJacques Lacan participou de um debate no Collège de Medicine, em Paris, no hospitalLa Salpetrière. Tal fato tornou-se famoso pelos primeiros estudos sobre histeria empreendidos por Sigmund Freud com Jean-Martin Charcot. O tema do debate entre Lacan e outros médicos era “o lugar da psicanálise na medicina”. Para Lacan, a psicanálise ocupa um lugar marginal, quando não, extraterritorial: marginal, porque a medicina a aceita como “ajuda de fora” e extraterritorial porque os próprios psicanalistas se conservam fora do campo da medicina moderna.
A modernidade, diz Lacan, modificou profundamente o ofício do médico. Antes investido de prestígio e da autoridade do sagrado, o médico tornou-se na modernidade um cientista com a visão do organismo humano enquanto “aparato” que deve manter em funcionamento por meio da aplicação e distribuição de produtos da sociedade industrial. Se o médico tornou-se um produtor de exames e um “distribuidor de medicamentos” (Lacan dixit!), há, por outro lado, as demandas populares por um novo direito humano que se chama saúde. O paciente vai pedir ao médico seu “ticket de bem-estar”. Os médicos brasileiros que atendem seus pacientes com as listas de exames a realizar e medicamentos a prescrever em punho não deixam Lacan mentir. A medicina, tanto na França nos anos 60 do século passado quanto no Brasil contemporâneo, procura resposta a uma demanda “pela saúde de um corpo fotografado, radiografado, calibrado e diagramado”.
No entanto, como lidar com esse corpo que olha, que fala, que chora? Como lidar com a dor que não encontra resposta nos medicamentos? Como tratar do desejo e da busca de satisfação intratáveis? O que fazer com o desejo de saber que o paciente dirige ao médico, intimamente ligado aos segredos da vida e da morte? Para Lacan, o psicanalista ocupa hoje o lugar que originalmente era do médico, perdido quando a medicina se restringiu à busca do saber científico e à organização da saúde pública.
Uma rápida interpretação da Lei do Ato Médico e dos artigos vetados sustenta a tese de Lacan: quem perderia ainda mais em nome da cientificidade e da organização da saúde inscrita na lei seriam os médicos, pois já perdem, em meio ao volume e à padronização de seus procedimentos, a transferência, laço sagrado que os ligava outrora a seus pacientes. A questão não é, portanto, se a psicanálise vai um dia ser sujeita à medicina, mas como os médicos podem resgatar a transferência perdida em meio à bateria de exames e ao cumprimento do código. “Se ao médico deve permanecer algo que seria a herança de sua antiga função sagrada”, diz Lacan, “ele, a meu ver, deve perseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud.”
Dorothee Rüdiger é psicanalista, Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo