Por Dorothee Rüdiger
Como se relacionam o sofrimento do corpo e da psique? O que são dores? O que é, afinal, um corpo humano?
Celeste, a bela moça do céu dos brigadeiros está no chão. O corpo afetado no rosto, nos ombros e nos braços não a deixa mais realizar o que já foi um sonho: sair de baixo das asas da mãe, fugir de casa, levantar voo, conhecer o mundo. Aérea desde menina, voou para longe e caiu das nuvens pelo diagnóstico médico: distrofia fácio-escápulo-humeral. A força não está mais nos braços, os ombros não suportam o peso das bagagens e o belo rosto está ameaçado de perder o sorriso.
O sofrimento do corpo, diz Sigmund Freud, pode ser sintoma de histeria. Katharina, a moça que morava nas montanhas austríacas, queixou-se de sintomas de falta de ar, pressão nos olhos, cabeça pesada e zumbidos no ouvido. Elizabeth, a jovem louca de vontade para dançar uma valsa no baile, tinha dores nas pernas. Dora, uma adolescente rebelde, não sarava de uma tosse nervosa. Desejos sexuais assustadores recalcados tinham lhes afetado o corpo e a mente. Trazidas à luz as experiências escondidas na escuridão do inconsciente, essa era a aposta do neurologista Dr. Freud, poderiam sarar do sufoco, da dor, das manifestações dos conflitos inconscientes no corpo. Nasceu assim a psicanálise, com as dores no corpo das pacientes de um médico desconfiado que o ser humano era doente da civilização.
Mas, e Celeste? Ela vai poder se livrar da distrofia fácio-escápulo-humeral, doença provocada por uma mutação genética? Ou vai ter que se sujeitar à sentença da ciência e permanecer no chão dos fatos, escondida debaixo das asas da mãe? Afinal, é seu corpo que lhe afeta a mente!
As questões do corpo e da mente nos levam à questão do Ser e da existência. Nós que somos médicos, psicanalistas, filósofos (ou reles mortais) percebemos corpo e mente e os concebemos das mais diversas maneiras. Martin Heidegger, o filho mais famoso e polêmico da Floresta Negra, dedicou sua vida à questão do Ser, aquilo que Jacques Lacan chama de o Real. Heidegger deu largos passos em falso, quando pensou ter encontrado o conceito do Ser na história da Alemanha nazista. No entanto, clareou a questão do Ser e influenciou a filosofia pós-moderna, quando se entregou ao mistério e à solidão, falando com poucos e para poucos.
Para Heidegger, a via de acesso ao Ser é o estar-no-mundo, o Dasein. Para termos uma noção do Ser, não servem os trilhos da ciência, mas as trilhas na floresta que seguimos e abrimos para chegar a uma clareira envolta pela escuridão da mata fechada. Quem conhece a Floresta Negra, sabe do que Heidegger está falando. Quem conhece a floresta Amazônica, mais ainda! Dasein, estar no mundo, é uma interpretação histórica individual do Ser. Está ligado com o corpo, o estar-no-tempo. No entanto, quem é o homem em seu tempo?
Heidegger comunga essa questão com psiquiatras reunidos em Zollikon, na Suíça, entre os anos 59 e 69. O médico, diz Heidegger, conhece as duas dimensões do corpo: é cientista, mas está também diante do homem em sofrimento. Freud é disso um grande exemplo. Nunca deixou de ser o médico cientista, quando se dedicou ao sofrimento da psique.
Seres humanos, estamos no tempo com nosso corpo físico (Körper) e nosso corpo mental (Leib), os dois inseparáveis. Quando tornamos presente por nossa mente um lugar tal como a estação de trem de Zürich, estamos tão presentes nesse lugar quanto estamos sentados em volta de uma mesa. Em seu ensaio Leibproblem, Jorge Forbes leva o exercício até o aeroporto de Congonhas.
A ciência nega o estar presente mental, o Leib. Só reconhece o fato do estar presente fisicamente. O corpo para a ciência é carne e osso. Possuímos nosso corpo, porque é palpável. Lacan alerta no Seminário do sintoma: “o homem diz que tem seu corpo. Já dizer seu significa que ele o possui como um móvel”. O corpo mental, espiritual, o Leib atinge uma outra dimensão. É a abertura para o mundo. Embora fisicamente distante, é aberto para o Ser: “O poema do ser apenas iniciado é o homem”. Tocamos o Ser com esse corpo, o Leib.
Nisso tudo, há cientistas que se confundem. Tal como Dr. Hegglin, citado no seminário de Zollikon, e que toma o corpo como mensurável, a psique como não mensurável, objeto de especulação. Como não se satisfazem com a especulação, tais cientistas reduzem a psique a funções do cérebro. Medem a intensidade de sentimentos, do luto ao orgasmo, com suas aparelhagens. Só localizam o corpo, não a psique.
Algo incomensurável, no entanto, manifesta-se numa lágrima. Algo infinito manifesta-se no orgasmo. O luto e o êxtase sexual atingem o corpo em duas dimensões: enquanto o corpo físico derrama líquidos, o corpo mental, o Leib, “dá um sentido à imagem sem contato com o objeto”, como diz Heidegger. O corpo termina na pele, enquanto “o limite do Leib é o horizonte do ser, no qual estou inserido”. Ao Leib, refere-se Lacan, quando, no Estado do Espelho, diz que, ainda bebês diante do espelho, juntamos os pedaços do corpo para formarmos o corpo como imagem para não nos sentirmos despedaçados.
Mas, quanta confusão entre Körper e Leib há em nossa sociedade idólatra do corpo! Somos donos de corpos que devem ser esbeltos, bem torneados, malhados, nem que seja com a ajuda do bisturi. O corpo é remodelado, reformado, restaurado como um (i)móvel. O limite do corpo é o limite da pele. Quando o imaginário social não nos dá esses limites, ditando um ideal de beleza, é capaz de levar meninas anoréxicas morrerem de fome! E o Leib?
Celeste já esteve com seu corpo nas nuvens, levantou voo, fez de tudo para estar lá, no ar. Passou por uma rigorosa seleção na aeronáutica, teimou, conseguiu. Mas, seu corpo físico está afetado pela distrofia. A doença do corpo afeta Celeste no Leib. Rosto, ombro e braços não são meros órgãos fácio-escapulo-merais, instrumentos corporais que ela possui como uma caixa de ferramentas. O rosto sorri. Ombros sustentam uma figura humana. Mãos carregam, produzem, afagam. Celeste tem um Leib que ressente os limites dos músculos atrofiados. Esse Leib é capaz de tocar novos horizontes na psicanálise. Estas, sendo práxis, como diz Jorge Forbes, quando aborda o Seminário de Zollikon, trata do Leib, “determinante do corpo”. Pela psicanálise, clínica do Real, Celeste, tal como cada um de maneira singular, tem a chance de inventar-se: enxergar-se no espelho, juntar o corpo despedaçado, encontrar-se no amor, viver a poesia do Ser, buscar novos horizontes, “abrir-se para o mundo”. Para isso, Celeste, certamente, não precisa de um avião.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.