Teresa Genesini
A Pane, peça escrita originalmente como um conto em 1956 por Friedrich Dürrenmatt (1921- 1990) e depois adaptada pelo autor para o teatro, está em cartaz no Teatro FAAP com texto traduzido por Diego Viana e direção geral de Malú Bazán. Nela, um representante comercial, Alfredo Traps (Cesar Baccan) tem que interromper sua viagem devido a uma pane em seu Jaguar e pede pernoite na casa do juiz (Oswaldo Mendes), onde os amigos se reúnem – um advogado (Roberto Ascar), um promotor (Antonio Petrin) e um ex-carrasco (Heitor Goldflus).
O argumento que nasce desse encontro é um misto de jogo da verdade com tribunal fictício em que velhos juristas aposentados encenam suas antigas ocupações agora, como diz o juiz anfitrião, não mais presos “a formas, protocolos, leis e todo o entulho inútil dos tribunais”. O jogo é regado a vinhos refinados, servidos pelo mordomo (Marcelo Ullmann) que anuncia a cada fase o nome, a procedência e a data do vinho – a ideia é que quanto mais embebedados ficam, menos se censuram. Os anfitriões, assim, transformam o convidado em réu por um crime que ele havia cometido. Qual o seu crime? Não importa: “crime é algo que sempre se pode encontrar”, dizem os juristas. Justiça e culpa são os temas principais abordados no texto teatral.
A trama se desenvolve de forma que o réu, que se dizia inocente, na medida em que se embriaga, vai mostrando que no fundo se sente culpado, se sente um criminoso. Importante trazer aqui palavras de Freud:
“Por paradoxal que isso talvez pareça, devo afirmar que a consciência de culpa estava presente antes do delito, que não se originou deste, pelo contrário, foi o delito que procedeu da consciência de culpa. Tais pessoas podem ser justificadamente chamadas de criminosas por consciência de culpa. A preexistência do sentimento de culpa fora naturalmente demonstrada por toda uma série de outros efeitos e manifestações”.
Esse parágrafo, extraído de seu texto Criminosos em consequência de um sentimento de culpa (1916), pode explicar o sentimento expresso pelo personagem Traps, como comentou Jorge Forbes no debate entre ele e Oswaldo Mendes[1].
A peça é um exemplo vivo da teoria freudiana, que procura responder à pergunta: as pessoas podem matar para aliviar sua própria culpa? E a resposta de Freud é SIM. Para Freud, há um sentimento de culpa fundante nos humanos — não por algo que foi feito, mas por algo muito anterior, uma reação ao Complexo de Édipo. A culpa não nasce do delito, e sim o delito nasce da necessidade de se aliviar essa culpa. Ele ainda nos lembra, no mesmo texto, como muitas crianças provocam um castigo, ficando aliviadas e tranquilas depois dele.
Interessante notar também outra reação relacionada a essa culpa que todos carregamos: num determinado momento do julgamento que se instaurou na trama, o réu aceita os insultos que o promotor lhe endereça, ao mesmo tempo que rejeita a defesa que lhe oferece o advogado, mostrando que é mais fácil aceitar um insulto do que um elogio – tema já trabalhado por Forbes. “Existe, eu diria, um fascínio, uma sedução, uma hipnose no insulto. As pessoas ficam hipnotizadas ao serem insultadas. Ao contrário do elogio, que é sempre questionável, o insulto não deixa dúvida sobre seu alvo. Há uma tendência a dar peso de verdade ao insulto e a desconfiar do elogio”, escreveu ele no texto Do insulto e do elogio.
A arte, a poesia, o teatro sempre trazem à cena as situações do dia a dia, a subjetividade e, por isso, a psicanálise está sempre ligada a essas manifestações. Na clínica, nos deparamos diariamente com questões da verdade, da justiça e da culpa, que são o mote dessa peça de Dürrenmatt. Frente a esse jogo, o que uma análise propicia a uma pessoa é sair do registro da culpa para o da responsabilidade.
Teresa Genesini é psicanalista e diretora do IPLA.
[1] O debate aconteceu após a sessão da peça em 8 de maio de 2022.