Por Italo Venturelli
A psicanálise possibilita chamar à vida aquilo que a pessoa tem de mais íntimo e singular
Uma das marcas que trago nos meus mais de 30 anos de arte cirúrgica são os calos nos dedos de tanto operar traumatismos de crânio diariamente. A grande maioria é fruto de acidentes, os mais variados, principalmente de trânsito, resultado da triste combinação entre álcool e velocidade.
Dos que conseguimos recuperar, ficam alguns com sequelas. São jovens de todas as idades sem a possibilidade de uma vida tida como normal. Para se ter uma ideia, o número de pessoas com esse tipo de sequela, no Brasil, é maior do que os casos de Dengue. Surgem então famílias aflitas em busca de uma ajuda, quer seja de um tratamento mais adequado à enfermidade, um auxilio saúde ou uma aposentadoria.
Os recursos tecnológicos em muito têm ajudado os profissionais da saúde no tratamento desses casos visando a melhores resultados. Hoje, temos mais condições de intervir clinicamente, com exames de precisão, medicamentos de última geração, próteses etc. Mas, depois de um período de luto e de adaptação à nova vida, vem a fase da reorganização dos sentidos, dos afetos e dos projetos de vida.
“E agora José?” Para muitos, sem o atendimento médico específico e um tratamento psicológico, fica o amargor de uma vida interrompida. Outros não conseguem incluir e consentir com o acontecido.
O ser humano vai muito além dos limites do corpo biológico. A representação do corpo vai além daquelas apreendidas pelos exames de imagem, dos movimentos pelas vias padrões e dos prognósticos clínicos. Os sonhos não envelhecem apesar dos limites que o corpo biológico apresenta. Ser mãe, viver um amor e usufruir da sexualidade, fazer uma viagem desejada, estudar e investir na carreira profissional são projetos almejados e que podem estar na perspectiva de vida de alguém que teve uma lesão medular e que está cadeirante.
Por que alguns conseguem reaver a paixão pela vida e o descobrimento de um novo corpo e outros se entregam à resignação? É possível surgir novamente a vontade de sentir o vento no rosto, as sensações na pele, viver aventuras, o corpo experimentando novas sensações e conexões? Sim! Temos um corpo libidinal, erótico, que pode ser tocado e vivificado pela palavra.
Em atendimentos na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma na USP, em São Paulo, evidenciamos casos em que esse outro corpo, privilegiado pela psicanálise, subverte o corpo que traz a doença degenerativa. Há pacientes que após um período de atendimento analítico inventam novas formas de vida e descobrem um corpo para o amor, o sexo, o trabalho e outras experiências dantes tidas como impensáveis.
“Se chamarmos a vida pelo nome justo ela vem, porque esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”, disse Kafka, citado por Jorge Forbes no texto Felicidade não é bem que se mereça. A psicanálise possibilita uma pessoa chamar à vida aquilo que ela tem de mais íntimo e singular. É a força do desejo, capaz de vencer o sofrimento e a desesperança. Apesar da dor e da morte, inevitáveis a quem vive e ama, possibilita inventar a vida.
Italo Venturelli é neurocirurgião, diretor hospitalar e psicanalista.