Por Helainy Andrade
Uma análise leva alguém a assenhorar-se do seu sintoma, suportando a máxima poética, “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”
Pijamas. Era o presente que Dalva sempre pedia aos familiares e amigos. Para ela, as perspectivas de vida se limitavam às variações dos tons e estampas dessa vestimenta. Trocava um pijama pelo outro e voltava a se deitar, quando não na cama, no sofá, em cima das almofadas.
Ser portador de uma doença genética, para muitos pacientes, é trazer no corpo a inscrição de um mau augúrio, “crônica de uma morte anunciada”, ainda mais quando os sintomas se figuram nas gerações antecedentes. Dalva, na ocasião de sua primeira entrevista com Dr. Jorge Forbes e Dra. Mayana Zatz, no Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, mostrava que de alva sua vida já não tinha nada, era tudo uma noite sem fim. Ela se valia de duas respostas: a depressão e uma decidida resistência ao uso de cadeira de rodas e acompanhamento fisioterápico. No encerramento da entrevista Jorge Forbes disse: “Estou sabendo que você não está fazendo nada. Isso foi até hoje… Quero te ver aqui, daqui a três meses, com menos choro, mais disposição e mais fisioterapia”.
Quando realizei minha primeira sessão com Dalva, que se seguiu a essa entrevista, a data coincidiu com o dia do aniversário de sua mãe, que completaria 81 anos. Teimosa e brava, ela se via como uma cópia da mãe, além do diagnóstico em comum que a doença franqueava. A mãe, quando os sintomas se agravaram, resolveu sair da cena da vida, encerrou as atividades, se despediu dos familiares, voltou para casa, se fechou no quarto e daí a um ano morreu. Dalva estava flertando com uma solução semelhante.
A primeira fase do tratamento seguiu na direção de separá-la da perigosa identificação com a mãe. A estratégia foi colocá-la em contato com a sua própria situação para dar-lhe a chance de fazer sua própria história. Essa sua impregnação à mãe estava estreitamente ligada a seu adormecimento, pontuado por Forbes: “assim como a mãe se desligou da vida, trancando-se no quarto onde esperou a morte chegar, Dalva se vestia para dormir, enquanto a morte não chegava”. Estava fechada afetivamente ao contato com as pessoas. Nos últimos seis meses já não conseguia ficar de pé sozinha, o que a impedia de cuidar da casa e de si mesma. Precisava da ajuda do marido para lavar seu cabelo, já que não conseguia mais levantar os braços.
Os efeitos do tratamento se mostraram após a primeira entrevista com Dr. Forbes e Dra. Mayana. Ela procurou a fisioterapia. Sem resistência, começou o uso do respirador Bipap, o que a deixou mais descansada e bem disposta. Reorganizou a casa, jogou coisas fora, doou outras. “A gente precisa ser prática”, concluiu. Dalva deixava a inteligência ganhar da teimosia. Isso correspondia a um novo arranjo subjetivo que começava a se configurar.
No segundo encontro com Dr. Jorge e Dra. Mayana, após três meses de tratamento, Dalva fala dos novos projetos – aprender computação para navegar pela internet, comprar um carro adaptado para poder passear e ir aos tratamentos sem ter que ocupar seu cunhado. Revela um de seus talentos, a culinária, em especial, o feitio de bolos. Inspirado nessa arte, Forbes, num exercício poético, contrapõe a paixão culinária à morte: “Ok, existe a morte. Mas isso não tem que apagar a paixão”. No caso de Dalva, a paixão por cozinhar é uma herança materna. Ao privilegiar essa herança, Forbes instaurava a “análise gastronômica”.
A segunda fase do trabalho foi, ao contrário da primeira, de positivação do sintoma. Seu talento gastronômico foi localizado, pareado com o talento da mãe, de quem o herdou, e foi exigido que ela o inscrevesse no mundo. A tarefa era muito simples: fazer bolos para trazer, todas as vezes que viesse à sessão. Dalva sustentou o desafio, se submeteu à prova da apreciação por sua produção pelo outro e o fez com segurança e orgulho de si mesma. Ficou fortemente reconectada à vida.
Houve dois pontos de virada neste tratamento: sua desalienação em relação à mãe-cadáver e a positivação da boa herança materna, no caso a paixão. Com esses dois redirecionamentos, Dalva retomou a autoria de sua história de vida, se reenvolveu com os filhos e noras, e retomou as atividades que ainda lhe eram possíveis de serem feitas. Fez dieta, perdeu peso, manteve novos hábitos alimentares, ficou de novo vaidosa com unhas, cabelo e maquiagem. Está sempre fazendo crochês para encomendas ou presentes, viaja a passeio, faz fisioterapia regularmente, usa a cadeira de rodas e o Bipap e especialmente se alegra muito em presentear as pessoas com o que sabe e gosta de fazer: bolos.
Quando chegou ao Genoma, ela estava numa mórbida contemplação de sua própria degeneração. Da última vez que a vi, ela estava diferente, como se estivesse sob a própria pele, assenhorada de si, suportando a máxima poética, “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional.” É uma mudança de posição de um “vejam o que a vida fez de mim” para um “há algo que sei fazer na vida”. É um bom começo, para uma pessoa que conseguiu se reposicionar frente a existência. Descobrindo que há vida e trabalho, familiares e amigos e outros presentes a se ganhar, mais sugestivos e divertidos…
Helainy Andrade é psicanalista em Varginha-MG e pesquisadora na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP