Camilo E. Ramírez
Em última instância, todas as News são fakes
Jorge Forbes
TerraDois é um conceito criado pelo psicanalista brasileiro Jorge Forbes, para explicar de maneira clara as mudanças socioculturais e subjetivas do laço social de nosso mundo de hoje. Ou seja, as transformações das relações em todos os níveis, campos e contextos, principalmente do período que academicamente se chama de pós-modernidade.
Mas, ao contrário de outros pensadores, não interessa a Forbes ficar simplesmente denunciando as tragédias e as crises dos valores do mundo de hoje, propondo estratégias reacionárias (disciplinares, moralistas ou motivacionais), mas mostrar sim a amplitude das possibilidades criativas e responsáveis, que temos diante de nós.
Não nascemos, vivemos, amamos, estudamos, trabalhamos, morremos…das mesmas formas que antes. As diferentes ordens e profissões não só devem ser revisadas e modificadas, mas reinventadas, para poder entrar em diálogo com os novos desafios do século XXI. Governos, empresas, escolas, famílias… podem voltar para um funcionamento anterior, que eles achavam mais seguro, ou avançar com entusiasmo, se responsabilizando pelas suas apostas e criações.
Se em outras épocas foi suficiente viver com as éticas cósmica, religiosa e racional (todas elas com uma hierarquia e ordem em torno a um objeto: natureza, Deus, razão), hoje a diversidade, flexibilidade e polifonia dos elementos podem colocar qualquer sistema, ordem, instituição e governo em crise (não se fala já do muito tempo de crise nas ordens estabelecidas?), ao mesmo tempo que se amplificam seus horizontes criativos e inovadores.
Vou fazer um recorte a partir de uma pergunta simples: Como muda a memória em TerraDois?
Os estudos sobre a memória humana remontam a épocas antigas, passando pela Idade Média, com a tradição dos santos padres e os místicos, até os tempos da Ilustração com uma certa metodologia de registro e evocação, sem contar com uma forte tradição oral em diferentes povos. Passando pelos grandes aportes de Sigmund Freud, a respeito de como funciona a mente humana, os mecanismos do esquecimento e lembrança, o deslocamento das ideias em outras tantas delas, assim como as imagens inverossímeis presentes nos sonhos ou nos relatos da associação livre de seus pacientes; os estudos neurológicos e neuropsicológicos sobre a memória, seus tipos, classificação e patologias, como as demências (Alzheimer, Parkinson, cerebrovasculares etc.), assim como suas estratégias de reabilitação, e muitos mais, que se estendem até nossos dias. Nós podemos considerar, paralelo a todas essas pesquisas sobre a memória (funcionamento, patologia, reabilitação, engenharia genética e neurociências etc.) — guardadas as respectivas diferenças —, que a memória na atualidade do século XXI não é mais a mesma que antes, simplesmente pelo fato que nós temos, há mais de 30 anos, temos a fusão de nossas vidas com sistemas e dispositivos do ciberespaço e da internet das coisas, por meio de celulares e computadores etc. Então, nós podemos vislumbrar um futuro cada vez mais próximo, onde teremos instalados dispositivos em nossos corpos para procurar informações, aproximando-nos da supressão do esquecimento, do armazenamento e da memória ilimitada. Será assim mesmo? É uma situação que fará com que a escola, os livros e as bibliotecas tenham que reconfigurar seu sentido e razão de ser.
É algo já muito conhecido: a memória não é uma simples função de armazém onde algo é deixado e depois “retirado” um dia, mas um complexo sistema de armazenamento e evocação com a qualidade de poder editar e reeditar memórias, narrar a partir de uma determinada plataforma e perspectiva, com uma participação – avisada ou não – de quem narra, armazena e evoca.
Não é essa questão sempre envolvida no contexto da pós-verdade e das Fake News? Que elas explicam por uma perda de valores e referentes hierárquicos (“Meu Deus, agora todo mundo acredita em qualquer coisa!”), que fazem surgir movimentos de extrema direita, reacionários para um laço social anterior, disciplinar, aquele que se pensava mais assegurador, justo para um contexto cheio de incertezas, mas também cheio de criatividade. Essa questão não é mais que a posta em ato de algo que sempre esteve presente no funcionamento da memória: aquilo ao que Lacan chamou de ‘verdade mentirosa’: uma verdade que sendo, sim, verdade, é ao mesmo tempo, e por outra perspectiva, mentirosa, tridimensional, diversa, ampla, polifônica. Mais que funcionar como um elemento somente assegurador, cria-se múltiplos objetos, situações e possibilidades. E agora o sujeito, mais que se perguntar se aquilo que pensa, que lembra, é verdade mesmo ou é mentira, tem como questão central: qual é a resposta que darei com base nas coisas das quais me lembro? Ou seja, a responsabilidade singular que todos temos para com as nossas memórias, na forma como, ao longo do tempo, foram construídas.
No trabalho que venho realizando há mais de 20 anos com pessoas que sofrem de Alzheimer (e outros tipos de demência), que se caracteriza pela perda progressiva da capacidade de memória, tenho verificado que o diálogo e o dia a dia (aquilo que tecnicamente se chama “o manejo do idoso com demência “) não são desprovidos de evocação de elementos que os familiares relatam, de forma imprecisa, “Isso não é verdade”, “Não foi assim”. Ao que gosto de perguntar: “E como foi, então?”. Questão que produz uma série de memórias, narrativas… igualmente imprecisas e diversas, já que todos passam a ter uma opinião, percebendo em algum momento que nem mesmo eles, os “normais”, têm uma unidade de memória compartilhada.
Pois isso, mesmo o que é evidenciado nos casos patológicos, como no Alzheimer e outros tipos de doenças, é — como Freud observou muitas vezes — a expressão de algum elemento já presente na vida “normal”, que nos ensina não somente como a patologia progride (além de como retardar seus efeitos, inventar uma cura…), mas como funciona a memória, a pós-verdade e as Fake News na conformação do nosso laço social compartilhado.
Publicado em espanhol no jornal El Porvenir (Monterrey, N.L. México, 28 abril 2021).