A Medida da Felicidade 03/07/2023

Letícia Genesini

“Dizem que em algum lugar,
parece que no Brasil,
existe um homem feliz”.
Vladimir Maiakóvski.

Maiakóvski estava errado — pelo menos segundo a ONU, que divulgou, em março, o novo Relatório Mundial de Felicidade 2023, apontando a Finlândia como o país mais feliz do mundo pela 6ª vez consecutiva. Já o Brasil, país tropical abençoado por Deus, caiu 11 posições, saindo do 38º para o 49º lugar.

Todos os meios deram a notícia: mais uma vez sabemos onde mora a felicidade. A satisfação, porém, teve muito menos a ver com a confirmação desse tal paraíso terrestre — afinal, ninguém cogitou se mudar em êxodo para a fria Finlândia —, mas com a suposta validação de que haveria uma ciência da felicidade. O relatório da ONU chancela, para todos que compram e vendem fórmulas prontas do bem viver, a ideia de que a felicidade não só existe, mas pode ser parametrizada, medida, comparada — e, portanto, alcançada por todos que seguirem sua receita. O próprio governo Finlandês confirma a premissa, abrindo uma “Masterclass da Felicidade” com a promessa de que “a felicidade finlandesa é uma habilidade. Uma habilidade que pode ser ensinada.”

A tal receita de felicidade formulada pela ONU se dá a partir de um cálculo multifatorial que computa o PIB real, assistência social, expectativa de vida saudável, liberdade para fazer escolhas, generosidade, percepções de corrupção, entre outros fatores. Apesar dos ares de cientificismo — que se presta a demonstrar que este é um trabalho de homens sérios e não de meros poetas —, basta pouco para ver que essas são medidas de qualidade de vida.

Mas e a felicidade?

Sim… O PIB, a assistência social, a expectativa de vida saudável e todos os demais fatores, importam para nossas vidas. Afinal, o laço social não se sustenta na miséria, como bem coloca Freud em “O Futuro de uma Ilusão” dizendo que uma cultura que “deixa insatisfeito e induz à revolta um número tão grande de participantes não tem perspectivas de se manter duradouramente, nem o merece.” Mas…  bem-estar social é garantia de felicidade?

Voltemos a Freud.

Em “O Mal-Estar na Civilização”, nosso autor se coloca frente à questão da busca pela felicidade, mas para nos mostrar a impossibilidade de uma receita de como alcançá-la. Freud, destaca Jorge Forbes, “descreve algumas das maneiras standards com que buscamos a felicidade, sempre realçando as indicações e contraindicações de cada método, como se fossem remédios: uma ‘bula da felicidade’. Conclui, claro, que nenhum desses caminhos solucionam a experiência humana.”

O que Freud aponta nessa obra é justamente uma impossibilidade de um paraíso feliz, um lugar ou tempo em que o ser humano esteja em harmonia com o mundo. O que há é um indissolúvel desacordo, um mal-estar, já que ao entrar na civilização — ele nos conta — cedemos uma parcela do nosso desejo, cedemos a possibilidade de uma satisfação completa. Pois bem, o que um ranking da felicidade se põe a dizer é que não apenas há um lugar onde o homem está em plena harmonia com o mundo, apontando o caminho para recuperar o quinhão cedido do nosso desejo, mas que, para tal, bastaria ter… qualidade de vida. Colocamos o desejo, eles respondem, com a necessidade.

Se Freud diz que cedemos uma parte da nossa satisfação, deixando margem para alguém, em equívoco, imaginar que há um caminho para recuperá-la em sua completude, Lacan cessa a possibilidade de esperança: o desejo humano é irrespondível. Não por ordenação social, mas pela ordem do Real.

E a felicidade? Também ela não responde a quem chama?
Não por palavras de sentidos comuns.

A inconformidade do humano com o mundo vem com a palavra que se coloca sempre nesse intermédio, mas sem nunca fazer uma ponte precisa e perfeita. Com a linguagem ordenamos, classificamos, metrificamos o mundo, sem nunca chegar a ele. Nessa lacuna que não alcança o metro da simbolização, da ciência e do progresso há um silêncio desmedido, há uma irremediável surpresa de algo a sempre se dizer, que não encontra lugar nos sentidos compartilháveis, que não se deixa reger pelo todo da linguagem que opera no código comum[1].

A felicidade, na psicanálise, coloca Jorge Forbes no trabalho “Felicidade não é bem que se mereça”, é da ordem dessa surpresa[2], ao avesso do reconhecimento. Ela não está cifrada sob um código comum — em nossos genes, em um índice, em uma cartilha — mas em uma brevidade que nos escapa. É menos um caminho que se pode trilhar, uma lista de tarefas a se fazer, uma ciência a se conhecer, e mais um encontro que nos atravessa, nos colocando pra fora do entendimento a ponto de dizermos, lembra o psicanalista, “me belisca para ver se estou sonhando”.

Estranha a nós mesmos, nossa felicidade — quando está — não vem por palavras de ordem, por merecimento, por habilidade. Essa tal felicidade — quando está, pois por vezes ela está — não se coloca à prova, não espera quieta enquanto computamos os dados, não nos deixa plenos de certeza. Ela — quando está, será que está? —vem e vai e nos deixa… estupefatos. 

Nessa fronteira entre a palavra e sobressalto, aliás, é que trabalham os poetas e aqueles que não temem o que não acha palavras para se dizer — alguns o chamam de psicanalistas.

Para ouvir com o texto.


[1] “Toda língua é uma regência generalizada. (…) Os signos de que a língua é composta apenas existem na medida em que são reconhecidos, quer isso dizer que apenas existem na medida em que se repetem; o signo é imitador gregário” Roland Barthes (In: Lição).

[2] “Felicidade não é bem que se mereça” de Jorge Forbes http://jorgeforbes.com.br/felicidade-nao-e-bem-que-se-mereca-versao-completa/