Por Ariel Bogochvol
Drogas são usadas em todas as sociedades desde a aurora dos tempos pelas razões mais diversas – religiosas, ritualísticas, curativas, hedonistas, culturais e como analgesia contra o mal estar na civilização
Um acontecimento aparentemente trivial, banal, ridículo, insignificante pode provocar uma radical mudança na forma do estado brasileiro tratar da “questão das drogas”, um problema com implicações sociais, sanitárias, legais, econômicas, culturais, morais, políticas, subjetivas. Trata-se da comprovação do “efeito borboleta”, descrito pela primeira vez pelo meteorologista, filósofo e matemático americano E. Lorenz, na década de 60, e que faz parte da teoria do caos: o bater das asas num lugar qualquer pode produzir, pelo encadeamento de acontecimentos imprevistos, um furacão num ponto remoto do planeta.
Flagrado com 3 g de maconha numa cela da cadeia de Diadema, cidade da região do ABCD na grande SP, o detento Francisco Benedito da Silva foi condenado à pena de dois meses de “prestação de serviços à comunidade” pelo Colégio Recursal do Juizado Especial Cível do município. A sentença poderia simplesmente ter se juntado à enxurrada de sentenças tolas e absurdas proclamadas diariamente pelo sistema judiciário do país e passar despercebida, não fosse a intervenção do Defensor Público do Estado de São Paulo, Dr. Leandro de Castro Gomes que, num Recurso Especial – RE 635659 –, questionou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, base para a condenação do detento.
O artigo 28 estabelece que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
O Defensor Público alegou que a classificação como crime “de porte de drogas” para uso próprio violava o direito individual à intimidade e à vida privada previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, bem como o princípio da lesividade, uma vez que o uso privado de maconha não afrontava a saúde pública. Baseado, então, nos princípios da intimidade, privacidade e ofensividade – o Estado não tem o direito de se intrometer em questões da vida privada e fumar maconha não causa lesão a terceiros – o recorrente pedia a absolvição do detento por atipicidade da conduta e a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11343/2006. Uma lei infraconstitucional não pode violar princípios superiores da Lei Maior, a Constituição Federal.
É um terreno fértil para discussões acerca da noção de lei e delito, das propriedades lógico-normativas do discurso jurídico, da microfísica e a dialética do poder, da biopolítica e política de direitos humanos, da noção de subjetividade pós-moderna, da concepção de estado, democracia, república e do cidadão que deveria habitá-la. O recurso está em julgamento no STF e mobiliza grande debate na opinião pública, com a participação de especialistas, personagens ilustres, entidades ligadas ao direito, psiquiatria, direitos civis, ONGs diversas. A questão como o uso de drogas deve ser tratado pelo estado e pela sociedade brasileira? é, de fato, fundamental e a decisão do STF terá enormes repercussões no país.
Drogas são usadas em todas as sociedades desde a aurora dos tempos pelas razões mais diversas – religiosas, ritualísticas, curativas, hedonistas, culturais e como analgesia contra o mal-estar na civilização. A maçã da árvore do conhecimento do Éden, cujo consumo fora terminantemente proibido por Deus, é o exemplo mítico de uma substância que modifica a experiência psíquica e a relação com a realidade. O ato transgressivo de Eva e depois de Adão, consumindo a droga, é um pecado originário que marca indelevelmente nossa civilização. O modo como a sociedade e o estado tratam desse “pecado” – o uso de drogas “ilícitas” (e também das “lícitas”) por seus cidadãos – é bem representativo do estado desse estado e sociedade. No Brasil, o consumo de drogas era considerado um caso de polícia, delito passível de prisão, até 2006, quando a “lei das drogas” abrandou a situação propondo “penas sócio-educativas”, como a aplicada a Francisco Benedito da Silva. Trata-se, essencialmente, de uma discussão acerca do direito constitucional ao gozo, dos limites e não limites desse direito, da responsabilidade subjetiva ou social-estatal pelo seu usufruto, dos aparatos necessários para regulá-lo.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é uma das personalidades que há muito tempo se posicionou a favor da descriminilização. No filme Quebrando o Tabu, de Fernando Grostein Andrade, FHC critica duramente, e juntamente com os ex-presidentes do México, Colombia, Uruguai, Guatemala e EUA, a política de combate às drogas implantada pelos EUA em 1974, adotada em bloco na América Latina, que custou mais de US 1 trilhão sem resolver o problema. Pelo contrário, o “combate às drogas” apenas aumentou o número de usuários, dependentes, crimes, prisões e mortes associados à droga. A política da repressão fracassou.
Luis Eduardo Soares, antropólogo, cientista político e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública do governo Lula defende há muito tempo a mesma posição e evoca razões filosóficas, sociológicas e pragmáticas para sustentá-la: não cabe ao estado interferir na esfera privada e decidir sobre o uso de uma substância recreativa (como o álcool e o tabaco) que, no máximo, produz danos ao usuário, assim como não cabe interferir nas relações sexuais, proibindo, por exemplo, a prática de sodomia; a política de combate às drogas fracassou totalmente; a criminilização simplesmente aumentou o poder do tráfico e a corrupção policial e resultou numa discriminação – a hipercriminilização de jovens negros e pobres, imensa maioria dos indiciados e condenados por uso/tráfico que vivem nas prisões brasileiras.
Entidades de sociólogos, juristas, advogados manifestaram-se a maioria a favor da descriminilização, considerando que o problema do “uso de drogas” não era um crime passível de punição, mas um problema de escolha pessoal, de saúde, de saúde pública, cultural. A Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, curiosamente, posicionou-se contra. Em um manifesto publicado em seu site, em que confundia a descriminilização com a legalização, elencou uma série de argumentos de ordem científica, clínica, epidemiológica, política e pragmática para manter a política vigente. O manifesto foi assinado pelo presidente da entidade, Antonio Geraldo da Silva e por psiquiatras de renome como Ronaldo Laranjeira, da Comissão de Dependência Química,[i] e contestado em seguida por um grande grupo de psiquiatras também filiados à ABP e médicos de renome, como o ex-ministro de saúde J. R. Tinhorão e Drauzio Varela, baseados também em uma série de argumentos de ordem científica, clínica, epidemiológica, política e pragmática.[ii] Estranhamente, não se ouviram manifestações das sociedades, entidades e instituições psicanalíticas.
A psicanálise é uma das responsáveis pelo movimento de desrepressão vivido no século XX e XXI e os psicanalistas, pessoalmente, engajaram-se em causas libertárias, revolucionárias, democráticas, por direitos civis, pela igualdade, pela liberdade, das mais variadas matizes. Se “o psicanalista deve permanecer atópico em relação a corrente principal da civilização que o arrasta e não se encantar com a ‘liberação dos costumes’ por perceber seu avesso, o império do gozo, ele também não pode transformar-se em defensor dos costumes, em uma espécie de simetria inversa dos deslocamentos da civilização. Ele não deve se isolar numa falsa alternativa entre dizer sim ao empuxo ao gozo, cujas exigências são incessantes, e dizer não apelando para os limites da boa medida pois, nesses termos, sim e não conduzem igualmente ao triunfo do super-eu ”[iii], mas também não pode permanecer alheio à subjetividade do seu tempo e do seu país. No que diz respeito ao gozo, o psicanalista deve reenviar o sujeito à sua particularidade e à singularidade [iv], partindo do pressuposto de que, por sua posição, o sujeito é sempre responsável. Por isso, não há nenhuma razão clínica, ética, pragmática, política para um analista lacaniano e instituições lacanianas não apoiarem o recurso interposto pelo Defensor Público, assim como não há nenhuma razão clínica, ética, pragmática, política para apoiarem o status quo, ou seja, a criminilização.
O relator do Recurso no STF, ministro Gilmar Mendes, e os ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso votaram, com nuances, pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) e, portanto, pela descriminalização da maconha. O ministro Teori Zavascki pediu vista do processo.[v] Falta seu voto e de mais sete ministros. Em breve conheceremos os resultados do bater das asas de uma borboleta.
Ariel Bogochvol é psiquiatra e psicanalista, membro da AMP e da EBP, coordenador do NEPPSI-CAISM
[i] http://www.abp.org.br/manifesto/manifesto.pdf
[ii] http://www.cartacapital.com.br/politica/a-guerra-de-argumentos-pro-e-contra-a-legalizacao-da-maconha-106.html
[iii] Laurent, E. A Sociedade do Sintoma – p 171 Contra-Capa Livraria 2007
[iv] Idem, p 172
[v] http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/10/politica/1441919224_438796.html
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