Por Marcelo Veras
O filme A loucura entre nós é um filme inspirado livremente no meu livro homônimo. Enquanto o livro tinha um subtítulo, um lacaniano no país da saúde mental, o filme mostra o interior de um projeto social, o projeto Criamundo, que criei em 2002 para a reinserção dos pacientes psiquiátricos no mercado formal de trabalho. Ou seja, no livro eu conto nas entrelinhas o meu próprio drama, no filme a narrativa trata do drama dos pacientes.
Foram muitas as motivações para a escrita do livro A loucura entre nós. Algo de minha experiência, no cruzamento da clinica lacaniana com a burocracia e os tempos do Outro, exigia um esforço de escritura. Ocorre que meus anos de análise me fizeram ver que meu modo de organizar o gozo incômodo da vida passava pelo objeto olhar. Assim, letra e imagem deram forma ao filme de Fernanda Vareille. “Somos todos loucos uns pelos outros”, diz Elisângela, protagonista do filme. Essa frase se declina em mais de um universo. O Brasil atual, dividido pela política, nos fez conhecer o “somos loucos de raiva, uns pelos outros”. O recente episódio do estupro coletivo nos deu outro aspecto: “somos todos loucos pela pulsão, uns pelos outros”. Coube à Elisângela nos oferecer uma versão dessa expressão atravessada pelo amor. Um amor que faz dos seres reduzidos à dejeto, nas engrenagens públicas da loucura, a causa do desejo que nos leva ao cinema para assistir o que não pode ser visto.
Surpreendi-me com uma pequena multidão que rapidamente lotou as três salas do Espaço Glauber Rocha no dia da estreia do filme em Salvador. No debate ocorrido após a projeção falei rapidamente de um ponto que considero precioso e que as câmeras conseguem demonstrar com muito mais facilidade do que meu próprio livro. Refiro-me ao modo como podemos trabalhar com o olhar na clínica da loucura. O olhar na clínica é habitualmente identificado com seu poder disciplinador. Ao enquadrar, ele demarca uma alteridade entre o clínico/observador e o paciente/observado. Muito já foi dito sobre esse aspecto e a referência foucauldiana ao Panopticum de Bentham tornou-se um clássico na Saúde Mental. Quando fui diretor de hospital psiquiátrico, o mesmo onde foi realizada a filmagem, tive a certeza do peso desse olhar absoluto e do modo como esse olhar organiza os espaços e os corpos, estabelecendo um dentro e um fora. O olhar clássico sobre a loucura é sempre um olhar de fora para dentro. É como se só pudéssemos vê-la por uma fresta entre as grades, protegidos e separados.
Sempre me chamou atenção o modo como os personagens do filme reagiram às câmeras. Para a equipe de profissionais a câmera funcionou como Supereu. A equipe ficou nitidamente desconfortável diante daquela câmera. Suas falas pareciam um pouco um clichê da clínica, as lentes nitidamente impunham uma censura. Já para os pacientes, a possibilidade de falar para as lentes era liberadora. Todos queriam mandar mensagens aos familiares, aos amigos, à comunidade em geral. Nesse sentido, câmeras eram redentoras, elas faziam furo no olhar absoluto e se tornavam portas para o mundo externo.
O filme tem longas sequências fixas mostrando precisamente uma porta. Do lado de dentro, onde se situa a câmera e os pacientes do projeto Criamundo, temos a impressão de estarmos em uma ilha dentro do asilo. A loucura é um teatro que se passa do outro lado das grades. Contudo, rapidamente nos damos conta da impossibilidade de estabelecermos um muro eficaz. A primeira cena mostra um grupo de participantes do projeto trabalhando tranquilamente, em um ambiente claro e limpo, e aos poucos nos damos conta de que a paz é cortada pelo urrar de uma paciente. Urro de horror e desespero, vindo de alguma enfermaria do lado de fora.
O plano da porta é um perfeito enquadramento para a loucura. Na verdade esse plano lembra um pouco a play scene de Hamlet. Toda vez que uma porta ou uma janela aparece em um cinema temos a visão de uma cena dentro da cena. O público sentado na plateia já está diante da tela que é um enquadramento. O escuro em torno da tela é uma moldura. Então focamos o filme, e aí percebemos a loucura por trás da porta. Nesse momento é a realidade retratada no filme que faz papel de moldura, a loucura está mais além.
Eis que a câmera atravessa a porta, inicialmente como observadora. Ela passa a percorrer os corredores do asilo. Aos poucos os pacientes vão descobrindo a câmera. E de repente ela se torna um canal de expressão, eles começam a dizer para a câmera tudo que a instituição calava. Doravante eles não estão mais submissos ao olhar absoluto, um outro olhar, o da câmera, faz furo no panopticum de Bentham. Aos poucos o olhar subverte a segregação imposta. A loucura não está mais do outro lado, ela está entre nós. Cada história narrada desconstrói o retrato. Não é possível, contudo, viver sem uma moldura, e ao final vemos como cada um vai se virar com sua própria invenção de realidade. Os personagens deixam de ser um retrato fixado pelos discursos da saúde mental.
O filme, lembro, não é uma ficção. No final, as protagonistas, cada uma à seu modo, escolhem uma solução para o peso do olhar insistente do Outro. Uma personagem atravessa a moldura e a outra escapa do olhar deixando-se confundir na multidão. A partir de agosto o filme estará passando nos cinemas de todo o Brasil, sua difusão inclui também a difusão nas mídias diversas, lançamento em DVD e na TV a Cabo. Todos estão convidados a participar do debate. O trailer pode ser visto no site do filme: www.aloucuraentrenos.com
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise
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