A loucura como metáfora 26/03/2015

Por Marcelo Veras

A estranha moral é que mais o sujeito é capturado por um único discurso, mais ele tende a ser eclipsado

Lembro-me de um paciente psiquiátrico que foi elevado à condição de ícone da luta antimanicomial. Egresso de anos de tratamentos hospitalares sórdidos, em hospitais que beiravam presídios, a estabilização de sua psicose foi possível quando passou a militar contra o Outro que o mantivera encarcerado. Em suas intervenções, nas TVs, colóquios e debates, apresentava-se como mártir esclarecido de uma causa ao tempo em que preenchia perfeitamente os ideais do discurso que o sustentava e promovia. Da condição de louco, chegara a discursar na câmara federal. Essa identificação ideal permitiu-lhe um lugar no mundo que resguardava, com astúcia, o segredo de sua metáfora delirante. Ele delirava que era louco. Estabeleceu-se, portanto uma curiosa relação transferencial. Publicamente crítico da instituição, esse militante,  ex-paciente, fez desta sua militância a razão mesma de sua existência.

Esta organização paranoide, em que o louco se assume como louco, assim como o gay deve forçosamente se assumir como gay, acabou por ocupar o pano de fundo das novas relações transferenciais nas instituições públicas. A entrada dos códigos da lei em um espaço até então segregado pela cultura (o velho asilo psiquiátrico) produziu novos efeitos de sentido. É claro que se não houvesse a caravana de direitos humanos o horror dos asilos psiquiátricos brasileiros continuariam ocultos da sociedade. No novo contexto as coisas passaram a emergir em uma outra ordem. O hospital trata o paciente. A lei trata o hospital. O paciente faz a lei.

Assim, a instituição pública, falida e desprezada, passou a ocupar um lugar inédito na clínica da saúde mental. Ela passou a ser menos um lugar de interpretação ou imposição de um único discurso – tal como foi descrito por Foucault -, e mais um lugar de interação dentro do espírito, para o melhor e o pior, da conversação democrática. As queixas e demandas de reforma passaram a ocorrer em um plano onde foi possível uma negociação multidisciplinar. Estabeleceu-se consequentemente uma nova relação que se passa entre o eixo a-a’, o eixo lacaniano da realidade e do laço social. É preciso estar atento a esta mudança no momento em que o legislador pensa os destinos da instituição psiquiátrica. A babel democrática da militância de diversos discursos em uma instituição pública é bem diferente da pureza que pode ser obtida em um hospital psiquiátrico privado, onde a dominância de um discurso pode ser totalizante. A lógica comum pode, assim, ironicamente ser invertida. Queixávamos com frequência de que a pluralidade do discurso interdisciplinar era infernal, que era nela que residia a maior dificuldade em fazer existir uma unidade terapêutica sintetizada naquilo que se chamava de projeto terapêutico individual. Ora, somente o espaço público e democrático poderá garantir e suportar o choque dos discursos criando um lugar para o sujeito fora de qualquer discurso do mestre. A estranha moral é que mais o sujeito é capturado por um único discurso, mais ele tende a ser eclipsado. Observamos isso no momento atual. São os pacientes tratados exclusivamente por psiquiatras nos consultórios particulares ou nas caras clínicas privadas de luxo os que tendem a ser mais aspirados pela máquina da indústria farmacêutica e por uma clínica que ignora os efeitos colaterais importantes da droga “médico”.

Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise