A liberdade de ter um nome 28/05/2015

Por Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro

Ao longo de mais de quatro horas, a então candidata ao título de “Doutora em Educação” defendeu a tese de que: “uma formação universitária pode levar quem dela se beneficia a sofrer uma transformação brutal no modo como se relaciona com sua palavra”

Como alguém constitui um objeto de pesquisa e, assim, constitui-se como pesquisadora? Esta é a pergunta que me proponho a responder após ter tido a oportunidade de assistir à defesa de doutorado de Emari Andrade, ocorrida na última segunda-feira, dia 25 de maio.

Ao longo de mais de quatro horas, a então candidata ao título de “Doutora em Educação” defendeu a tese de que: “uma formação universitária pode levar quem dela se beneficia a sofrer uma transformação brutal no modo como se relaciona com sua palavra”. A banca (composta por docentes da UFPA, da UFU e da USP) não se furtou em elogios a esta pesquisadora que, aos trinta anos de idade, coroou um percurso de pesquisa (da Iniciação Científica ao Doutorado) que perfez dez anos dedicados a estudar a escrita acadêmica. Salientou que a defesa de sua tese, no nível em que foi apresentada, só pode prenunciar o melhor prognóstico com relação à carreira da moça.

O que foi a tese apresentada? Emari, orientada pela Professora Livre Docente da Universidade de São Paulo Claudia Riolfi, se interessou pela obscura tessitura de um texto. Analisou o processo de confecção de quatro dissertações de mestrado da área da educação, dando ênfase à influência que a orientadora teria exercido no refinamento dos rascunhos. Aos 30 anos de idade, a jovem pesquisadora escreveu um texto maduro no qual se propôs a mostrar os efeitos das intervenções executadas por um orientador cuja proposta de trabalho é levar seus alunos à excelência.

Segundo ela, para que suas quatro informantes redigissem um trabalho que, por sua clareza, adequação e por seu rigor na escrita, pudesse contribuir para sua área de formação, suas informantes tiveram não só que “aprender a escrever”, mas, acima de tudo, de passar por transformações subjetivas propriamente ditas.

Emari Andrade destacou que essas transformações incidiram em três aspectos da subjetividade de suas informantes. O primeiro é a relação com o saber. As mestrandas passaram de uma postura passiva para uma mais ativa diante da elaboração do trabalho. Deixaram o “cuida de mim” para privilegiar o “cabe a mim cuidar disso”. O segundo é a elaboração intelectual. As moças, em quem, a princípio, se viam dificuldades de construir o raciocínio lógico passaram a estar atentas ao cálculo dos potenciais efeitos de sentido dos textos que escreviam. O terceiro é a formulação do texto. Elas passaram a ter um cuidado especial com suas escolhas lexicais, morfológicas, sintáticas etc. Em outras palavras, construíram uma retórica, um estilo.

Assisti à defesa toda e aprendi muito com ela. Na impossibilidade de separar todas as lições aqui, limito-me a destacar dois pontos que me auxiliam a responder à questão proposta inicialmente neste texto. Pude aprender com Emari que constituir (se) algo é um percurso, sobretudo, de persistência. Uma persistência e insistência em unir enunciado e enunciação (ou corpo à linguagem). Sem que essa união se dê, alguém pode escrever um trabalho burocrático (existem muitos), mas não produz uma tese que cause o desejo de quem a redigiu e de quem a lê.

Talvez seja justamente por ter fugido à burocracia que Emari causou grande impacto sobre sua banca. Ao comentarem sua tese, todos, de algum modo, salientaram a

transformação brutal da qual ela mesmo se beneficiou. Ao se abrir para uma curiosidade irrefreável, ela sofreu uma transformação que tornou possível delimitar e constituir um objeto que não preexistia e sobre o qual faltam estudos.

Aprendi, também, que escrever um relatório de pesquisa (que transcenda à burocracia, ressalto) fornece a quem se empenha nisso a possibilidade de ganhar outro nome. Não, não estou me referindo a um título universitário. Refiro-me ao nome inédito que quem coadunou enunciado e enunciação tem a liberdade de se oferecer.

É paradoxal, mas belo: por ter sofrido a passagem na qual consiste lutar para conquistar o rigor universitário, a pessoa ganha liberdade: a liberdade de já ter traçado um caminho; a de ter, ainda, muitos caminhos inéditos a traçar; a de construir parcerias amorosas com quem intervém no seu texto (e na sua vida) e, principalmente, a de ter a coragem de se transformar em cada um dos aspectos relativos a sua subjetividade. 

Mariana é professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); doutoranda do programa de educação da USP e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP).