Uma interface entre a Dermatologia e a Psicanálise
Ana Cristina Guimarães
“Espelho, espelho meu; existe alguém mais bela do que eu?”
No antigo desenho da Disney, “Branca de Neve”, a Rainha Madrasta, arrogante e vaidosa, questiona o Espelho Mágico, revelador da verdade para ela. Imagem forte, inesquecível da infância.
No seguir da história, percebe-se que o principal interlocutor dela é esse espelho. A madrasta interroga o Estranho do Espelho em diversas cenas. Pode-se pressentir uma terrível insatisfação consigo mesma em sua voz, uma insatisfação que, ao final, a levará à morte.
Este desenho foi baseado em um conto compilado pelos irmãos Grimm, mas sua origem está na tradição oral alemã. Assim como os mitos, os contos e fábulas permanecem vivos ao longo dos séculos e em diferentes culturas quando trazem consigo um saber inconsciente.
Queixas estéticas relacionadas à insatisfação com alguma região do corpo são muito comuns na dermatologia. Estudos demonstram altos índices de insatisfação com a imagem corporal nas pessoas “normais”, especialmente nos adolescentes, mulheres na menopausa, pacientes de clínicas dermatológicas e cirurgias plásticas, ou naqueles que passam muito tempo visualizando as imagens das mídias sociais.
Em casos extremos, estas queixas podem indicar patologias psíquicas denominadas Transtornos de Imagem Corporal, tais como a anorexia e a dismorfofobia. Fazem parte dos Novos Sintomas, como diz Forbes, cada vez mais comuns na prática clínica.
Enquanto nos transtornos alimentares as queixas principais são relacionadas à forma e ao peso do corpo, na dismorfofobia (Transtorno Dismórfico Corporal), as queixas são com a própria imagem e um defeito nesta.
Nestes pacientes percebe-se um componente de desconexão entre o Real do corpo e sua imagem no espelho. A percepção desta imagem é distorcida. As queixas são fragmentadas: “meu nariz é grande…”; não gosto desta ruga na testa…”; prioriza-se sempre um pequeno detalhe em detrimento do conjunto. Quando tal “defeito” é corrigido, este paciente geralmente mostra-se descontente com o resultado, ou se este o satisfaz, logo descobre um outro ponto focal que passa a desagradá-lo.
O sintoma que mais ressoa em sua fala é uma profunda angústia e insatisfação com o próprio eu. A libido encontra-se voltada para si mesmo e pode-se encarar este transtorno como uma patologia narcísica. Há um componente de extrema ambivalência entre o enaltecimento de seu ego – considerar-se Rei/Rainha no imaginário, e o forte desejo inconsciente de destruir ou modificar completamente a própria imagem.
Ao longo de meses ou anos, eles procuram médicos diferentes, realizam inúmeros procedimentos estéticos e acabam por deformar o corpo e sua imagem.
O Ideal que perseguem é o da perfeição, mas o componente principal da dinâmica de sua psique não é uma pulsão de vida, mas sim, uma pulsão de morte voltada contra si mesmo, pois buscando o Ideal da perfeição, acabam por mutilar-se. O índice de suicídios nestes pacientes é mais alto do que na população normal.
Lacan ressalta em seus seminários, principalmente no seu texto “O estádio do espelho na formação do eu” que o eu é construído principalmente na relação e sob o olhar do outro. Ele descreve como metáfora disto a relação da mãe e da criança ao olhar-se no espelho e o júbilo desta ao ver sua imagem refletida. Ele destaca a importância da mãe simbolizar, isto é, dizer à criança que aquela imagem corresponde a ela própria. Ao fazer isto, o outro ajuda a criança a reconhecer-se, aspecto necessário ao desenvolvimento. No entanto, ele também faz a criança identificar-se com aquela imagem. O eu torna-se inseparável de sua imagem.
Como consequência prática, quando um paciente está insatisfeito consigo mesmo ou com algum aspecto desafiador da vida, pode-se perceber na clínica que ele pode também estar insatisfeito com a própria imagem. Nestas ocasiões, muitas vezes acaba procurando o médico para corrigi-la como uma forma de alívio para o seu problema e, quando isto não acontece, decepciona-se com o resultado dos procedimentos e também com o próprio médico.
Como Narciso, está tão voltado para o si mesmo que não “ouve” o profissional que o desaconselha a realizar o procedimento e não se “enxerga”.
Ao final, Narciso afoga-se no lago, desmancha sua imagem refletida na superfície da água e morre. Que o conto da Branca de Neve e o mito de Narciso nos levem a meditar mais sobre o tema.
Ana Cristina Guimarães é membro do Corpo de Formação do IPLA. Médica e escritora. Especializada em Dermatologia e Medicina Antroposófica.