Por Teubislete Ferreira Borges
Os grandes temas de sempre (sexo, amor, morte) continuam captando o gozo das gerações atuais de alunos
“Deficiências nas condições de trabalho, baixa remuneração, problemas na infraestrutura das escolas e existência de muitos professores com contratos de trabalho temporários são algumas das dificuldades enfrentadas pelos docentes da rede estadual de São Paulo, segundo quatro entidades de classe consultadas pelo jornal O Estado de S. Paulo.”, afirma o UOL Notícias. Eu não precisava ter lido os jornais, porque tenho sentido essa realidade na carne.
No meio do mês de agosto, fui selecionada por uma escola pública da periferia de Carapicuíba para trabalhar como eventual, professor que substitui outros professores quando eles faltam. Parecia bom. Como eventuais, não temos a obrigação de ensinar este ou aquele conteúdo, temos ampla liberdade para decidirmos o que levaremos para a sala de aula e como desenvolveremos o trabalho; não aplicamos notas aos alunos, temos a oportunidade de fazê-los participarem das atividades porque elas são interessantes! Por esse motivo, o professor eventual possui a chance de pôr em prática o que muitos educadores sonham: a educação tendo como finalidade a própria educação em si. Será?
No momento da entrevista, a diretora me contou que havia na escola um primeiro ano do Ensino Médio para o qual os professores não conseguiam lecionar. Comecei a trabalhar sentindo dificuldades. Os alunos comemoram quando os professores faltam, desejam ser dispensados das aulas, por isso o eventual é, nesse caso, um obstáculo! Quando desejamos realizar uma atividade, há, inicialmente, bastante resistência, afinal, não conseguirão nota, caso a façam. Às vezes, é comum encontrarmos nas turmas um ou outro aluno interessado, porém este é ridicularizado pelos colegas.
Há uma quantidade enorme de professores faltando ao trabalho diariamente. Os alunos nos deixam muito claro: “Se os professores não querem dar aula, por que devemos vir para a escola?”. Não se sabe para que turmas lecionaremos no dia, o que complica o ato de preparar as aulas: essa turma tem muita dificuldade em escrever textos narrativos, logo tentarei fazer esses exercícios; os alunos dessa turma estão com problemas sérios de leitura, por esse motivo trabalharei com essa atividade. Mas, somente é possível saber para quais turmas lecionaremos no dia e na hora da aula.
Depois de alguns dias na escola, conheci a sala tão complicada (muito mais que as demais para as quais lecionei). Quando entrei, os alunos estavam bem agitados e bravos! Falaram “Você já é a quinta eventual que entra aqui hoje!”. O barulho era imenso, testaram-me muito! Tentaram de inúmeras maneiras me irritar. Exemplo: uma pequena guerra de giz e bolas de papéis, ou ainda, saírem da sala sem pedir autorização. Assim que entrei, percebi o tamanho da “bomba”. Não era à toa que quando era dia de lecionar para aquela sala, os professores simplesmente faltavam! Confesso que, depois de algum tempo, eu não desejava voltar a trabalhar com aquela turma, chegando a pensar: não é possível dar aula para eles.
A história começou a mudar no momento em que percebi o quanto eles sofriam de tédio na escola. Vídeos, contos curiosos, histórias jocosas começaram a ser mais bem recebidas. O texto Pingo sem chuva (do livro Serelepe, de autoria de Edione de Castro Souza) foi um ponto de virada. Trata-se de uma história em que a protagonista realiza uma grande travessura: ela consegue “mijar” na cabeça da amiga. Os regionalismos presentes na história, o ato de urinar na colega e a maneira brava como essa reage podem provocar no leitor muitas gargalhadas. Li o conto, tentei imitar os sotaques das personagens e, pela primeira vez, consegui fazer boa parte da sala prestar atenção. Durante a semana, alguns alunos daquela sala chegaram a me perguntar se eu lecionaria para eles.
Essa experiência deu-me os parâmetros para assumir, mais tranquilamente, o famoso “estar pronto a todas as circunstâncias”. Na próxima vez que fui chamada para dar aulas para a famosa “pior turma da escola”, não tinha nada preparado. Entrei, olhei para a lousa e vi que o professor de português havia escrito “Classicismo”. Os alunos então me informaram que o professor não tinha trabalhado nada do assunto, apenas havia escrito aquilo na lousa para “disfarçar”, caso algum coordenador passasse. Segundo os alunos, o professor escreveu o tema e ficou a aula inteira sentado, de braços cruzados.
Disse-lhes então que iria aproveitar para explicar-lhes coisas a respeito da Antiguidade Clássica. Eu contei que sou formada em Latim e que existe muita coisa interessante construída pelos gregos e romanos. Comecei a narrar a história do nascimento de Afrodite (ou Vênus para os romanos) presente na Teogonia de Hesíodo. Descrevi o pervertido Céu (ou Urano) fazendo inúmeros filhos na Terra (ou Gaia) e que tamanha “tara” não permitia o nascimento dos filhos.
Os rostos curiosos e os risos apareceram quando eu mencionei o pênis de Urano boiando no mar, ejaculando. Narrei, então, o nascimento de Vênus ou Afrodite a partir da mistura da espuma do mar com a espuma do esperma. Por essa razão a deusa é referida como a “deusa do amor, do sexo” e “deusa protetora dos navegantes”. Em seguida, contei aos alunos da responsabilidade de Afrodite na guerra de Troia, motivo dela adquirir, também, a atribuição de deusa da guerra. Rapidamente, mencionei o auge do Império Romano e a necessidade de se criar uma obra representando isso. Escrevi na lousa “Arma uirumque cano” e fiz o paralelo entre a Eneida de Virgílio, a Ilíada e a Odisseia de Homero.
O assunto guerra e navegações fez com que alunos começassem a falar de filmes ligados a essas histórias e de personagens da mitologia (até os Cavaleiros do Zodíaco apareceram durante a aula); o aluno que desenhava na lousa foi até seu lugar e sentou, prestando atenção na aula (sem que eu pedisse). Escrevi: “As armas e os barões assinalados” e perguntei: “Parece algo?” Eles apontaram para o verso de Virgílio. Então, exclamei: ao abrir os Lusíadas com essa frase, Camões comunica-nos o diálogo entre essa obra e a Eneida e, por sua vez, também entre a Ilíada e a Odisseia. Mencionei a relação entre essa criação e o Império Português, as grandes navegações. Mostrei-lhes que há em os Lusíadas os heróis que passaram “por mares nunca de antes navegados”. Encerrei a aula da seguinte forma: e que deusa Camões escolheu para ajudar os portugueses? Justamente Vênus, deusa protetora dos navegantes, deusa do amor e também da guerra!
Ninguém dava um pio. Ficaram duas aulas boquiabertos, maravilhados. Eu aprendi que os grandes temas de sempre (sexo, amor, morte) continuam captando o gozo das gerações atuais de alunos. E eles, o que aprenderam? O grande aprendizado que essa turma teve, em minha avaliação, não foram os conteúdos, mas sim, que é possível ter aula. Ou, em outras palavras, que eles não são um caso perdido, em quem não vale a pena mais nenhum investimento.
Teubislete Ferreira Borges é professora de língua portuguesa da rede estadual de São Paulo.