Por Gisele Vitória
Gisele Vitória comenta os três trabalhos apresentados pelos alunos dos Cursos Intermediário e Fundamental “De Freud a Lacan” na Conversação Clínica do IPLA 2016
Ícaro quer voar. Não há mais por perto o pai, Dédalo, mas ele permanece no labirinto paterno, construído para aprisionar o monstro no seu interior. Ícaro voa alto com chá de cogumelo, maconha e ayahuasca. “Quando eu estou sem a droga, eu me sinto sem fé”, ele diz, de acordo com o relato de Natália Sardenberg, durante a apresentação do seu estudo “Sim…Toma! A Marvada Droga”, o último dos três trabalhos de alunos do curso fundamental “De Freud a Lacan”, que encerraram a Conversação IPLA 2016, em dezembro. Antes, foram apresentados os seguintes textos: “O Triunfo sobre uma Ilusão – Psicanálise e Religião no Século XXI”, focado no avanço das religiões neo-pentecostais, em particular a Igreja Universal do Reino de Deus, e “Poli-verso feminino”, sobre a nova presença da mulher no mundo da pós-modernidade.
Voltemos a Ícaro. Ele voa cada vez mais perto do sol. Já percebe que a cera de suas asas derrete. O trabalho de Natália é um relato de sua clínica no serviço público de saúde mental, com dependentes químicos de álcool e drogas. Ícaro, seu paciente de 25 anos, é usuário de drogas há quatro, foi internado algumas vezes e já tentou se enforcar com um lençol. No momento, está sem a droga. Natália descreve que ele passa a mão na pele e diz: “Eu não estou sentindo Deus”. Se Ícaro põe fé na droga, Natalia põe fé na psicanálise. Na angústia de quem vê a frequente interrupção dos tratamentos e no centro de uma difícil competição com a sedução dos narcóticos, ela cita Freud: “A vida muda e a psicanálise também. Nós só estamos começando. E a psicanálise nunca fecha as portas para uma nova verdade.” A contribuição psicanalítica defende uma direção: a noção de gozo e a noção da responsabilidade. Sem noção? Não.
Que droga
Lacan defende “uma clínica que caminha para além do Édipo, para além da orientação paterna, para além da interpretação do passado, para além do sentido”, diz Natália. “Não é pela via da violência nem pela força policial.” É a clínica que trabalha na educação do sujeito, na responsabilidade, ela insiste. “Nos resta, impotentes, observar com perplexidade e chamar às regras. A psicanálise vai além do uso da força e da lei”. A psicanálise fornece uma dimensão ética a esta questão social: “Força no desejo e na responsabilidade para que o sujeito possa modificar a sua relação com o Outro e com menos sofrimento que reside a sua própria pele.”
Helainy Andrade, que comenta o estudo, acrescenta o desafio dos novos sintomas frente a uma alteração de uma sociedade vertical para horizontal na pós-modernidade: “Ganhamos em liberdade e perdemos em ordenação. Assim é a rede. Hoje, exigimos a satisfação imediata, como uma opção de forte apelo para alguns. A droga se presta à satisfação perfeita e instantânea, de tal forma que um tratamento que se pretenda disciplinador, catequético, pedagógico ou qualquer outro nome que escolher, esse tratamento falhará”. A resposta mais próxima, defende Helainy, é um tratamento que inclua o que Freud e Lacan perceberam naquilo que distingue o ser humano dos demais animais: A saber, a noção de gozo. O homem encontra satisfação numa situação que extrapola o prazer.
Mas a briga é dura. E existe sempre mais uma corrida ou mais uma dúzia de tentativas, tal como a aflição e a beleza de um filme alemão: Corra, Natália, Corra.
Da fé na psicanálise à fé neo-pentecostal
A fé na psicanálise, contudo, nem sempre ressoa em grande escala. Na verdade, sua escala ainda é pequena. Há outras formas de fé depositadas, talvez, na boa vontade das massas. Quase sempre, ela encontra aconchego nas dores como aquelas cantadas por Raimundo Sodré em A Massa, sucesso nos anos 80: “A dor da gente é dor de menino acanhado/Menino-bezerro pisado, no curral do mundo a penar/Que salta aos olhos, igual a um gemido calado/A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar”. As religiões oferecem respostas prontas a “Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais/Amassando a massa, a mão que amassa a comida/Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais.”
É possível que a massa dos homens normais prefira os neo-pentecostais. É exatamente no crescimento das religiões neo-pentecostais no Brasil, especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, que se debruça o trabalho “O Triunfo sobre Uma Ilusão – Psicanálise e Religião no século XXI”, de Arlete Schinazi, Elisa Padovan Andreotti, Maria Isabel Sorelli, Lilian Cristina Mattos e Rinaldo Gama. Na conversação do IPLA, em São Bento do Sapucaí, o tema mostrou o quanto desperta paixões e abre frentes de discussão.
Paralelos com a Teologia da Libertação
A colaboração do teólogo Clovis Pinto de Castro nos comentários expandiu o debate para um apanhado histórico que incluiu não só o contexto do crescimento das igrejas neo-pentecostais no Brasil e o nascimento da Universal do Reino de Deus. Clovis apostou ainda nas razões do declínio da Teologia da Libertação no catolicismo e constatou a atual retomada da ascensão da Igreja Católica, a partir do carisma e das ideias renovadoras do Papa Francisco. A proposta da Universal, que hoje tem sua força materializada, entre outras coisas, na imponência do Templo de Salomão, encontraria apelo nos pilares em que se baseia. “A igreja Universal está atenta a cultura pós-moderna, só que ela dá respostas pré-modernas para o mundo da pós-modernidade”, pontua Clovis.
Essa atenção com as demandas atuais explicaria, em parte, a razão da Teologia libertação ter reduzido seu alcance em detrimento da procura pelas igrejas neo-pentecostais. “A gente tem que saber o contexto em que a Teologia da Libertação começa a diluir a sua força. O cenário politico e cultural religioso alterou-se profundamente após a queda do Muro de Berlim, em 1989, diante do esfacelamento da utopia marxista”, opina Clovis. “Houve um triunfo do projeto neo-liberal. Essa é a verdade. Com o fim das utopias que marcaram boa parte das gerações, houve um esfacelamento desse projeto social, histórico e marxista. E a teologia da libertação está apoiada nessa raiz. É uma teologia que não levava tão em conta questões da espiritualidade mais subjetiva.”
Igreja e poder político
Clovis aponta ainda um paralelo entre o poder da Igreja Universal e sua tentativa de governabilidade, rodeada na órbita dos partidos políticos e da força dos veículos de comunicação. Ele lembra que, durante séculos da história da civilização, a Igreja Católica sempre caminhou junto com o poder político. “Não devemos esquecer que a Igreja Católica nunca saiu do governo e sempre teve um poder muito grande. Forbes entra no assunto e observa: “O poder é tanto que a gente acha normal.” E diante de quem vê como novidade o crescimento de uma igreja que está querendo ter parte no governo, Clovis reforça que a igreja católica cultuou este caminho durante séculos. Seguindo o paralelo, ele responde a uma indagação com uma provocação:
“Ainda que a Teologia da Libertação tenha perdido espaço e força, isso não significa que ela não tenha conseguido, por exemplo, elevar o Partido dos Trabalhadores ao poder”. Clovis compara e sugere que boa parte dos representantes dos movimento sindical e dos militantes do PT vinham de comunidades eclesiais de base. E ainda emenda: “Frei Betto (um dos pais da Teologia da Libertação) foi fundamental para a formação política de Lula e de vários líderes do Partido dos Trabalhadores. Houve, sim, um projeto que chegou ao poder. E que tinha suas bases nas pastorais católicas. Não há duvida, se analisarmos dessa forma, que a Teologia da Libertação chegou a colocar um partido no governo.”
Jorge Forbes acrescenta um “pitaco” psicanalítico à discussão, lembrando a base do pensamento de Freud sobre o tema e a história familiar de Lacan com a religião (seu irmão era padre). “Como o trabalho expôs, para Freud a religião é uma neurose obsessiva. E, ao ser neurose obsessiva, significa dizer que as religiões são providentes. Não seria possível uma religião que não tivesse o aspecto da providência”, diz Forbes, que, na sequência, ironiza e sugere: “Devíamos inventar uma religião não providente. Talvez a psicanálise já seja.” Segundo ele, ter fé é acreditar que haverá sempre uma providência de alguém em relação ao sujeito. “Normalmente uma pessoa perde essa esperança providencial no decorrer de uma análise”, comenta. “Por isso, a psicanálise não é tão bem vista no meio religioso. Até porque vários religiosos deixaram a batina fazendo análise.” Elisa Padovan, uma das autoras do trabalho, fecha a discussão e aponta que a religião não triunfa sobre o Real. “O Real triunfa. E por isso a religião cresce”, ela completa, em referência ao aforismo de Lacan de que a religião sempre triunfará.
FÉ, menina
A fé é feminina. A fé é menina. Fé, menina. Há poderes que dialogam nessas duas palavras. Ou numa só: feminina. Teve a força de um poema a apresentação do trabalho “Poli-verso feminino”, de Alexandre Cardoso, Debora Spinelli, Francisco Rodrigues, Lindnalva Borges, Sheila Fernandes e Sandra Hermoso. Os alunos homens não estavam presentes. A voz e a presença das quatro alunas mulheres ganhou magnetismo diante da plateia da Conversação IPLA 2016. Elas começam ao som de Bjork, a rainha da estranheza que desafia o adjetivo excêntrico no mundo pop, para dizer que a mulher sempre foi um enigma para o homem e para ela mesma. “O feminino passa pelo que escapa ao simbólico, que não se compreende, não se localiza e também não se consegue interpretar. Aquilo que está fora da linguagem é desconhecido e ameaçador”, diz o texto, na voz suave de Sandra Hermoso. “A Monalisa, de Leonardo da Vinci, com um sorriso ambíguo, é a imagem do enigma feminino congelado, seu semblante oculta e sustenta o que ela quer dizer, uma verdade que é da ordem do real.”
O comentário da professora Dagmar Castro Pinto, começa com uma provocação: “Os olhos habituados aos textos arrumadinhos seguiu o percurso não previsto. Descobri, em cada frase deste trabalho, movimentos hiper-dialéticos, como o tema provoca. Surge o feminino e sua inquietante presença.” Os movimentos Pina Baush ajudam a formar o conteúdo de um texto que desassossega e tira da zona de conforto das receitas prontas o feminino, ela diz. “Nesse desalinho do olhar, recorro ao que me é mais próximo. Bruxas ou santas? Há séculos, a mulher não era contada em censos.” Dagmar continua: “Considerada de valor menor, a mulher não aparecia na história oficial, salvo raras exceções”. Ela relembra que os direitos civis são recentes, ao menos no mundo ocidental: votar, dirigir, participar… O corpo. Um capítulo à parte. O corpo da mulher era pertencente ao homem: “Ao marido, ao pai ou à própria sociedade”. Dagmar relembra o ponto do trabalho que menciona o que é ser mulher, inclusive no corpo de um homem, como no filme “Meninos não Choram” (Kimberly Peirce, 2000), citado na apresentação.
A professora recorre a manuscritos de monges dominicanos para mostrar como a história e a religião legitimaram as manifestações de violência de gênero, a demonização das parteiras, as decisões sobre o aborto e as razões do estupro, pela mera argumentação das vestimentas femininas. “As bruxas e os demônios sempre trabalham juntos”, Dagmar alude em seus comentários. “A mulher é um sintoma do homem: aquilo que representa para ele opção de sua estabilidade discursiva. Uma mulher desestabiliza, desacomoda, inquieta.” Dagmar traz à mesa uma orientação religiosa escrita na Idade Média, com recomendações para como proceder diante das mulheres bruxas: “ ‘Inimigo da amizade, um mal necessário, uma tentação natural e uma calamidade desejável. O que contribui para o aumento do número das bruxas é a lastimosa rivalidade entre as pessoas casadas e as mulheres e os homens solteiros. Se isso é assim inclusive entre as santas, como será entre as demais?’” Assim, ela repassa alguns legados das religiões sobre as mulheres.
“A mulher é o perigo, o desajuste, e a santa acolhedora. O incomodo e o desassossego das boas almas masculinas. Como não titubear diante das recomendações recebidas ao longo dos séculos sobre os perigos que as mulheres representam?” A caça às bruxas foi legitimada. No Genesis, está escrito: essa sim, “é osso do meu osso e carne da minha carne. Essa foi chamada mulher porque do homem foi tirada. A primeira mulher, contudo, foi formada de uma costela curva, e se encontram curvadas em direção contrária a do homem.” Isso fica claro, prossegue Dagmar, no caso das mulheres que tinham pouca fé. Ou, que duvidavam. Eis a prova que vem da etimologia: a palavra femina. Dagmar relembra que ela provém dos vocábulos “fé” e “menos”. Ou seja, a mulher é muito débil para manter e conservar a fé. Tudo bastante compatível com a construção social do ser mulher, o que anos depois foi elaborado no Livro “O Segundo Sexo, de Simone Beauvoir: “Toda a virgem é puro espírito ou carne voltada para o Diabo.” Dagmar sustenta que a mesma religião que rebaixou a mulher ao nível mais desprezível, “Bruxa”, é a mesma que a colocou no mais alto nível de pureza, “Santa”.
“Através de Maria, a Igreja explora a possibilidade de Maria sair de sua condição pecaminosa, descendente de Eva. O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria. Pergunto-me, como remover as marcas dessa vestimenta da civilização? Não se tira com a roupa o fato de sermos atravessadas por ela”, afirma ela. Dagmar destaca que o texto encontra um caminho respaldado pela psicanálise. “É na língua que saem a criação dos significados: Há na mulher, uma função fálica. Basicamente insatisfeita, ela tem muito a escolher. Ser mulher é inventar o tempo todo o que não existe. É invenção e responsabilidade. A saída da mulher para escapar da civilização se traduz em criação?” Essa história não acabou. Violência. Mortes. Estupros. Os avanços da história ainda permitem um retorno ao mesmo lugar. Em que Real orbita a mulher? Faltou uma costela ao masculino? Não há respostas prontas. Só fé de menina. De Bjork a Madonna. Da santa à bruxa. Ave, Maria.
Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três
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