Rosa ou azul? Menina ou menino? Eis a questão!
O mundo começa a nos cercar com suas identificações, quando, já na maternidade, colocam uma fitinha em nosso berço. Dependendo do parecer médico e da cor da fitinha, somos classificados em homens ou mulheres. Dotado de um pênis, o ser humano é homem; quando falta o órgão sexual masculino, o ser humano é mulher. “É a natureza,” …
Parece simples. Mas quem diz, que o ser humano obedece ao padrão dos que pensam saber o que é um homem e o que é uma mulher? Quando somos mulheres, o padrão das mais diversas culturas humanas nos leva a crer que nos falta algo. A civilização é construída sobre a lógica do sim e do não, do ter e não ter, do fort – da, “foi embora – taí” , do qual nos conta Sigmund Freud, observador da brincadeira do neto. As línguas humanas se orientam nessa lógica. Ter ou não ter (um falo) marca não só o pensamento, marca um jeito de ser, marca o inconsciente. Falta, castração, desejo, … Azul ou rosa?
Designadas como sendo mulheres, procuramos na civilização o que possa nos faltar. Parece ser esse o destino de boa metade da humanidade, designada pelo lacinho cor de rosa. Como quer a tradição, o lacinho logo é trocado por uma bonequinha, por uma fitinha no cabelo, um vestidinho com mangas bufantes. A princesinha no berço cresce, torna-se princesa adolescente à espera de um príncipe em seu cavalo branco e com uma espada para cortar as roseiras que a prendem na torre de marfim.
Mas… espera aí! Será que é assim?
“Uma mulher não nasce, uma mulher se faz,” escreveu Simone de Beauvoir e captou, nos anos 50 e 60 do século passado, que o sonho das princesas mudou. Não há mais príncipe em cavalo branco, não há salvação pela espada masculina. No século XXI, as filhas de Simone vão à luta, feito Joana d’Arc e as heroínas dos desenhos animados (ou não) que povoam a fantasia de nossas filhas que acham essa estória da princesa e do príncipe em seu cavalo branco muito mal contada. “Ela cortou os dedos do pé e o calcanhar para caber no sapatinho de cristal? Por um príncipe? Eu não faria isso nunca!”
Sendo mulheres, é nosso o mercado de trabalho, que aprecia polivalência, invenção, capacidade de trazer o inusitado. Sabemos fazer de tudo um pouco, como apreendemos desde cedo. Estudamos em escolas e universidades, abraçando profissões até há pouco “masculinas”. Corremos atrás de carreiras, laboramos, ganhamos dinheiro para gastarmos com nossos homens e filhos, e em roupas, sapatos, em eterna juventude. O mundo da moda está aos nossos pés, realçando nossas curvas, nosso gosto pela novidade. Nossas profissões nos dão poder aquisitivo para adquirir coisas belas, tampando o que, no fundo, ainda faz falta.
Eis a questão. Algo sempre falta. Jacques Lacan vai precisar tese de Simone no campo da psicanálise, quando escandaliza e entusiasma as pessoas nos anos 70 do século XX com a frase “A mulher não existe!” Como assim? Vivendo incomodada, desconfortável, desconfiada de que “não é só isso”, numa civilização permeada pelo “sim” e pelo “não”, só resta a uma mulher inventar a si e ao mundo. “Inventa moda” …
Mas, e a fitinha cor de rosa que designa as meninas às quais falta algo?
Mulheres, padronizadas justamente por tal ausência, correm sempre para cobrir o buraco. E entram na fria redoma da padronização. Aceitam o que inventam para tampar um buraco que só existe, porque há as fitinhas azuis e rosas. Às vezes, vestem a camisa azul, não a largam e obedecem, paradoxalmente, à lógica do azul e do rosa.
Para levantar voo, e obter da vida algo, só resta a uma mulher ser subversiva, “roubar” no jogo, como observa a psicanalista Lou Andreas Salomé, amiga de Sigmund Freud. Pois, sendo meninas ou meninos, não participamos da decisão sobre as regras do jogo, quando colocam uma fitinha rosa ou azul em nosso berço, sem nos consultar. Significam essa fitinha rosa como falta. E a azul? Fardo de ser à prova dos estereótipos da masculinidade.
Mas quem diz que o destino das mulheres é carregar a fitinha da falta até o túmulo? Já que uma mulher está fora do padrão masculino, ela tem a chance de desenvolver sua singularidade. Essa chance tem um homem, quando ousa livrar-se dos padrões de ter que ser aquele que “mata a cobra e mostra o pau”.
O mundo torna-se fantástico quando não há o padrão a seguir. E o sem-padrão existe. Pode ser descoberto nos bailes da periferia de São Paulo, nos arredores da “25 de março” ou nos espaços de co-working dos jovens que trocam a estabilidade profissional por uma vida com mais criatividade. Existe, quando se toma o banho de cachoeira, quando se faz compras na feirinha de orgânicos na “Madá” para descobrir antigos e novos sabores. O mundo sem padrão vive no artesanato e na arte, encontra seu caminho no carnaval de rua, deixa espiar pelo buraco na cerca do campo de futebol, oferece mil cores.
E a cor rosa? Faz parte do arco-íris.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo