A cor preta 31/10/2013

Por Dorothee Rüdiger

Como os black blocs vão conseguir manter sua identidade sem identidade?

A cor preta está tomando as ruas de nossas cidades. Posicionando-se à frente de manifestações de cidadãos descontentes com as políticas públicas, os black blocs, blocos pretos de pessoa mumificadas de vestes pretas da cabeça aos pés, espalham terror. Se antes seus integrantes cometiam brincadeiras de mau gosto, espalhando e queimando lixo, e delitos menos graves, estilhaçando vidraças, agora, tornaram-se verdadeiros anjos da morte. Em São Paulo, agrediram, covardemente, no dia 25 de outubro, o Comandante Reynaldo Simões Rossi, responsável pelo policiamento da área central.

Sabemos que os black blocs não se entendem como grupo, mas sim, como tática de manifestação. Suas vestes pretas servem para disfarçar sua identidade facilitando o que chamam de “ação direta”. Sua identidade é a falta de identidade.

Os black blocs surgiram como Schwarze Blöcke em 1980 na cidade de Hamburgo, na Alemanha. Os blocos brasileiros referem-se, em suas páginas nas redes sociais, a anarquistas históricos como Pietro Gori e Errico Malatesta. Inimigos do capitalismo, sentem-se legitimados para quebrar vidraças e caixas eletrônicos, queimar carros e pichar prédios. Contam com certa tolerância da Justiça, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Muitos dos detidos durante suas manifestações violentas foram soltos com o argumento de que há dúvidas sobre sua identidade. In dubio pro reo, e a tática dos black blocs dá certo. Há magistrado que lhes oferece certa simpatia. Assim, o Juiz de Direito Luis Carlos Valois reflete, embora com cautela,  em artigo publicado na página do Partido Comunista Operário, que janelas quebradas trazem ar puro para a esperança de um mundo respirar melhor.

Será?

Esse mundo melhor seria conquistado com a violência surda, muda e cega? Os revolucionários de outrora acreditavam na força criativa da violência como meio necessário para derrubar uma sociedade patriarcal, injusta e autoritária. No entanto, do sonho anarquista desses tempos resta hoje somente o meio, a violência. Expressão daquilo que Jacques Lacan chamou de Real, essa violência sem propósitos pode ser lida como uma reposta desesperada a uma sociedade global, na qual “os heróis morreram de overdose”, para lembrarmos Cazuza. Nessa sociedade, os padrões nos quais as pessoas poderiam se orientar são artificiais e incoerentes. Daí o desespero principalmente para os mais jovens, desbussolados, como diagnostica Jorge Forbes diante das incertezas da sociedade global. Consequência é, como nomeia o autor em Inconsciente e Responsabilidade, os sintomas dessa sociedade sem eira nem beira . Dentre esses sintomas está a violência inusitada.

Vistos a partir desse ângulo, as vestes pretas, as máscaras e o look agressivo dos jovens revoltosos dos black blocs dão conta de um imenso mal-estar na civilização contemporânea. Mas, quem diz que não há norteadores? Prontamente, o mercado se oferece para literalmente vender a ideia. Assim, devidamente customizada, a moda a la black bloc tornou-se série de fotografias da atriz Bárbara Paz, que exibe nela joias de alto quilate.

À parte o carnaval do imaginário dos mascarados e seus imitadores resta a violência nua que está chamando para ser detida. Como uma única letra faz a diferença, a ação direta tornou-se, nas palavras dos articulistas da Folha de São Paulo Esther Solano e Rafael Alcadipani, “ação direita”.  Sim. Os black blocs e sua violência evocam um certo dejá vue. Lembram a atuação das Freikorps, das milícias que, utilizando-se de meios violentos contando com a benevolência da Justiça, espalhavam na República de Weimar terror e tornaram-se peça chave na ascensão do nazismo ao poder.

Estar descontente com a civilização é humano. No entanto, sendo nosso único meio de sobrevivência, ela nos demanda atitude. Uma delas é ficarmos cara a cara com nossos adversários. Se isso não ocorre, só nos resta o buraco negro da barbárie. 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo