A clínica do Real e seus bisturis 13/03/2014

Por Elza Macedo

Aula apresentada no curso “Os novos sintomas e o tratamento psicanalítico”, em 22 de fevereiro de 2014, no IPLA

O objetivo é caracterizar a clínica do Real no sentido proposto por Lacan, e analisar porque essa clínica pede bisturis. O objetivo será também o de fazer um percurso histórico do lugar deste instrumento em Freud e Lacan, e no que lhe concede Forbes, hoje. Finalmente, o objetivo será o de apresentar uma série de bisturis, no contexto de extratos clínicos. 

Plano de Voo:

I. Clínica do Real
II. Bisturis
            Freud
            Lacan
            Forbes

III. Exemplos de bisturis

I. Clínica do Real

A psicanálise é a Clínica do Real. A Clínica do Real é a segunda clínica de Jacques Lacan. É a clínica própria ao século XXI. Hoje se analisa como nos tempos de Freud? Não. “A forma de um sintoma se adapta ao relevo social de uma época.” (FORBES, 2003, p. 185)

Quando Freud criou a psicanálise o mundo vivia a era industrial, uma época em que o pai ou seu representante (chefe, governo) era o eixo e dava a direção. O laço social era vertical, piramidal e o pai ficava no alto da pirâmide. Porque ele detinha o saber, os sintomas podiam ser tratados pelo sentido, pela interpretação. O software criado por Freud, próprio a esse mundo, foi o complexo de Édipo. E pode-se dizer que continuou assim até a década de 60.

Na década de 70 houve uma ruptura, o mundo mudou, o saber se generalizou. Os softwares se multiplicam. O pai perde seu lugar de chefe, de saber e de bússola e o homem, por perder as raízes, ficou desbussolado. Daí os laços sociais passaram a se organizar horizontalmente. A sociedade se torna descentralizada funcionando em rede. As pessoas se juntam e se separam de acordo com a ocasião e o sabor das pulsões. A fragilidade do laço social dá margem às epidemias sintomáticas (GLADWELL, 2002). Com o não-saber do pai há o curto-circuito da palavra. Os sintomas já não respondem ao sentido. O Édipo já não funciona como bússola em uma sociedade na qual o homem se coloca livre e igual. O gozo, então, não é mais vivido como incestuoso e impossível. Os novos sintomas são invenções para tratar o Real. São expressões mais diretas da pulsão.

Lacan foi um visionário, previu as mudanças pelas quais o mundo ia passar e nos deixou uma clínica própria para o mundo de agora. Forbes (2001) no texto “Lacan, analista do futuro” afirma que “na impossibilidade de se garantir através de uma explicação causalista e reducionista do seu passado, o analisando é levado a inventar um futuro para si próprio, sem nenhuma outra razão além daquela do seu desejo” (p. 52). A clínica do Real é a clínica do homem desbussolado; ela não tem uma bula. Não é um prêt-à-porter, algo pronto para vestir. É alta-costura. É para cada um. Por isso, os bisturis.

O inconsciente agora é considerado, não do ponto de vista da cadeia significante, mas da pulsão. Disso decorre a responsabilidade sexual pela escolha do parceiro ou do sintoma com que se goza.

Estamos diretamente implicados nas mudanças éticas, nas mudanças de paradigma e nas mudanças de caminho. O Real está concernido aí.

Lacan cria a expressão “Desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975-76, 2007, p. 160) para se referir a alguém que não adere ao senso comum, ao modo banal de usar as palavras e que pode nomear sua singularidade. Ao desistir da compreensão, o desabonado do inconsciente está livre da expectativa do outro e aberto à criatividade.

A clínica para o mundo atual é a clínica do sentido a menos, do parlêtre, da primazia do Real, do emprestar consequência. “Não se trata de um pequeno ajuste, de uma continuidade, mas de uma mudança paradigmática, o que é um desafio para os psicanalistas” (FORBES, 2012a).  Como lembra Forbes (2003, p. 70) , na clínica do Real decide-se e afirma-se no corpo, não na razão. “Nós cremos pensar com nosso cérebro. Eu, eu penso com meus pés, é somente aí que eu encontro alguma coisa de duro” (LACAN, 1975, p. 6). “Se vocês podem pensar com os músculos subcutâneos da testa, podem também pensar com os pés” (p. 14). Lacan tira o  peso da razão. Temos a ação do silêncio. Silêncio como o que não foi marcado pela palavra. Silêncio como a marca do não-saber (FORBES, 2003, p. 120).

II. Bisturi

Freud. Bisturi é usado na medicina como instrumento cirúrgico. Freud usa este  termo como metáfora cirúrgica. Em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912/69) indica que tomem como modelo um cirurgião que durante o tratamento psicanalítico não se prende a seus sentimentos e se concentra no objetivo de realizar a operação tão competentemente quanto possível (p. 153). Ele também recomenda ao médico utilizar seu inconsciente como instrumento da análise (p. 154). Ao dar esta instrução, considero que, já em 1912, está implícita a ideia de bisturi em psicanálise. E este bisturi é o inconsciente do analista. Freud (1917/1976) volta ao tema na Conferência XXVIII – Terapia analítica: “O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma operação cirúrgica e exigir, de modo similar, que seja efetuado sob condições que serão as mais favoráveis para seu êxito. … A intervenção dos parentes é perigo real e não se sabe como enfrentar.” (534-5) “Não há instrumento ou método médico garantido contra mau uso; se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar” (539). Em Análise Leiga, afirma que “ … a atividade de um analista não formado causa menos mal a seus pacientes do que a de um cirurgião inábil.” (FREUD, 1926/1976, p. 264)

Lacan. Jacques Lacan (1953-54/1983), no Seminário 1, retoma a ideia de bisturi para Freud. “O mesmo se dá para a Psicanálise e para a arte do bom cozinheiro, que sabe cortar bem o animal, destacar a articulação com a menor resistência. … não é com a faca que dissecamos, mas com conceitos” (p. 10). Portanto, os conceitos são bisturis. “Como o bom cozinheiro, devemos saber que juntas, que resistências encontramos” (p. 11). “… a questão das regras práticas a observar, faz-nos ver o quanto se tratava ali, para Freud, de uma ferramenta, no sentido em que se diz que se tem um martelo na mão. Bem seguro na minha mão, diz Freud, e aí está como costumo segurá-lo.”  (p. 18)

O analista, como um cirurgião, não titubeia em cortar onde deve.

Forbes. Jorge Forbes (2013) propõe não separar a cirurgia da psicanálise, pois se cirurgia implica perigo, a psicanálise é igualmente perigosa. Freud usou o termo bisturi como metáfora, Forbes agora o propõe em termos do Real. Por exemplo, em caso atendido na Clínica de Psicanálise do Genoma -USP, um paciente com distrofia muscular se queixa dizendo, “- Doutor, o senhor tem ideia do que é acordar, olhar para a porta do banheiro, olhar para a bengala e não saber se vou conseguir chegar até lá?”.  – Não tenho a menor ideia, responde ele (FORBES, 2009). É impressionante como este bisturi abriu a clínica.

O analista busca um ponto de incidência que permita ao analisando se abrir ao seu universo singular. Os bisturis abrem a clínica. Não há tratamento standard. Não há protocolo geral que venha reger o tratamento psicanalítico. No livro Você quer o que deseja?, Forbes (2003) se referiu à vergonha, honra e luxo como bisturis (p. 81), considerando o analista operador de uma exceção (p. 83). O uso de bisturis permite em uma análise a conclusão precipitada. Se o discurso que dá sentido é um discurso fálico, uma conclusão precipitada é uma conclusão não-fálica. Ao se deparar com o analista numa posição de radical incompreensão, a pessoa chega a uma desistência, não esperar mais, a concluir precipitadamente. Afinal, as conclusões não são mesmo garantidas (p. 123-125).

A psicanálise é uma ética (p. 135). A psicanálise não consente com o uso de ferramentas morais tipo: Vou me associar a seu lado sadio para tratar seu lado mau. Não traça uma linha asséptica entre o bem e o mal (p. 155). Bisturi enferrujado é o bisturi superegoico (FORBES, 2013).

Os bisturis da Clínica do Real, mais do que conceitos, dizem respeito ao ato analítico. Não dissemos que a Psicanálise toma o relevo de sua época? Hoje a hegemonia não é do simbólico, mas do Real. Por que bisturi? Porque não se espera a solução, opera-se. A operação é direta e rápida. Promove a separação do corpo com os significantes que marcaram a pessoa e a parasitaram. “Tire isso de mim!” Como disse Lacan, no Seminário 23 (1975-76/2007), “a fala é um parasita, a fala é uma excrescência, a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92). A operação analítica visa a levar à invenção e responsabilidade.  

III. Tipos de Bisturis

1. A quebra das expectativas. 2. A crueza. 3. A nomeação do gozo. 4. A surpresa e o deslocamento do gozo. 5. Emprestando consequência. 6. A clínica do ato. 7. O ator. 8. A clínica irônica. 9. A interpretação descompleta. 10. O ressoar e a lógica sensível. 11. O silêncio. 12. A palavra poética. 13. A presença do analista. 14. O analista.

Bisturi é um termo aberto a muitas possibilidades. Aqui serão apresentadas 14 delas. Teóricos como Freud, Lacan e Forbes possibilitam que um recorte do mundo seja utilizado por outros, que seus bisturis sejam usados por outras mãos e que tenham valor como nas suas. Conceitos são como bisturis e, na medida em que certo bisturi serve para cortar melhor ganha uso mais amplo (FORBES, 1999, p. 116-7). Os bisturis permitem à pessoa “ajustar a palavra à vida, conciliar a palavra com o corpo, fazer da palavra a própria pele até alcançar o almejado `sentir-se bem na própria pele’.” (FORBES, 2003, p. 11)

1. A quebra das expectativas

Há um exemplo de quebra de expectativas que retiramos da clínica de Lacan, a partir do relato por Jean Allouch (1999, p. 38). Uma mulher chega à sessão, decidida a se confessar. Lacan, sem nenhuma curiosidade, interrompe a sessão antes que ela pudesse fazer isso.

Neste caso o bisturi opera assim: se a pessoa age segundo certa expectativa, o analista faz com que ela mude o paradigma da sua expressão. Introduz uma surpresa, algo que toma a pessoa de modo que ela se sente ultrapassada: ‘Mais forte que eu.’ O caso atendido por Forbes (2009) Não tenho a menor ideia é outro exemplo. Há uma quebra da expectativa de sentido. Esse foi o bisturi utilizado.

2. A crueza

Para descrever este tipo de bisturi, recorremos a um exemplo da clínica de Jorge Forbes. Um senhor o procura angustiado devido a um câncer avançado. Lamuria: “É duro, Doutor, a gente ficar dependente, saber que vai durar pouco, que está piorando, que logo vai morrer”. O analista, sem colocar emplastos, diz: “Claro que é duro saber que está para morrer. É isto”. Assim, ao nomear o que falta para continuar a existir – “É isto o que te falta” -, paradoxalmente a morte se apresenta em sua brutalidade essencial. Esta intervenção possibilita que a pessoa se dê conta da existência do impossível e conclua: “Não, não é isto”  (FORBES, 1999, p. 176).

O caso já mencionado Não tenho a menor ideia também ilustra o bisturi crueza, contrapondo-o à compaixão. Daí nosso trabalho na Clínica do Genoma ter sido denominado Desautorização do sofrimento prêt-à-porter. Lacan disse que o analista tem horror a seu ato. A coragem tem a ver com o horror ao ato. Coragem de romper com o pacto moral. A crueza pode ser necessária. Covardia é identificação com o pacto moral. Coragem é responsabilidade pelo impacto ético. 

3. A nomeação do gozo

Para caracterizar este bisturi recorremos a dois exemplos da Clínica de Psicanálise do Genoma. A paciente, histérica, tem dificuldade em suportar sua beleza. De fato, tratava-se de uma moça bonita, que tinha recebido o diagnóstico de distrofia facio-escapulo-umeral. O analista destaca a beleza que ela procurava negar mostrando-se descuidada. Sugere que vá a um cabelereiro para ficar mais bonita, assim, angustiar-se e tratar-se. Não há outra fala que não seja a sexual. Os termos que usamos são todos eles afetivos e têm a ver com a sexualidade. Dizer “Você é bonita” implica responsabilidade no sentido ético – posição subjetiva e não moral – usos e costumes. (FORBES, 2003, p. 90, 171, 207). Há outro caso, relativo a uma paciente com a mesma distrofia. Ao entrevistá-la, Forbes pergunta: – “Como vai?”, ela responde: “Com o traste que empurra minha cadeira, como o senhor acha que estou?” O traste a que ela se referia, era o marido. Ela relata que seus dois maridos anteriores também eram trastes. O analista intervém: Você sofre de trastite. A nomeação deste gozo deu a direção do tratamento.

4. A surpresa e o deslocamento do gozo

Para apresentar este tipo de bisturi tomo mais um exemplo do livro de Allouch (1999). A paciente para Lacan: – Como dizer o que se passou com você (referindo-se a si mesma)? Lacan: – É isso exatamente, como dizer? (p. 78). Outro exemplo utilizando a mesma referência. A paciente fala a Lacan de suas análises precedentes. Muito rápido, ele responde: – É de uma desanálise que você precisa. (p. 44)

Esse bisturi possibilita à pessoa sair da adaptação (na doença) para a responsabilidade por seu modo de gozo. Como diz Forbes (1999): “a análise retifica (alinha) a posição do sujeito com o gozo impeditivo  do ato” (p. 135).

5. Empréstimo de consequência

Um exemplo retirado da clínica de Lacan (conforme ALLOUCH, 1999, p. 39) ilustra o bisturi empréstimo de consequência. Um paciente em tom irritado, diz: “Puxa! Eu sou uma besta.” E Lacan responde: “Não é porque você diz que não seja verdade.” Outro exemplo: o paciente chega, deita e depois de algum tempo fala: – Não tenho nada a dizer…Lacan responde: Pois é! isso acontece! Até amanhã, meu caro. (p. 64). Um terceiro exemplo: o paciente diz “Sonhei que você me propôs que eu deitasse e eu lhe dizia: por que isso agora? Lacan: Deite meu caro. (p. 42)

O analista responde dando consequência ao que a pessoa diz. Ela espera sentido e o analista empresta consequência. Ao emprestar consequência, consequência do que se diz, o analista não espera nada além do dito.

6. O ato analítico

Pierre Rey (1990) indica uma situação de impacto em sua análise com Lacan: “Com palavras muito duras, Lacan ameaçou suspender o tratamento se eu não encontrasse uma maneira de saldar minhas dívidas. … A primeira etapa de minha análise devia passar por um retorno ao real: sem o eletrochoque de sua exaltação, que me deixava em pânico, será que eu teria podido dar esse passo?” (p. 82). 

“O ato psicanalítico, ao contrário da ação, a qual faz crer ao sujeito que ele é mestre do que faz, o ato ultrapassa o analista, do qual ele é o autor.” (FORBES, 1999, p. 45)

Mais um exemplo de ato analítico da clínica de  Jorge Forbes. A paciente diz: – Sou uma merda. Sou uma merda. Sou uma merda. Na saída, ela estende a mão a ele que faz um movimento de lhe dar a mão para em seguida retirá-la bruscamente. O analista suporta o ato, não realiza o ato. O ato nos ultrapassa.

O gozo desbussolado pode ser apreendido pela palavra-ato que ordena o excesso de gozo. A palavra-ato marca e nomeia. A palavra poética, que capta algo do ser, conquista esse gozo.

7.  O ator

Na clínica do Real agir como um ator é um bisturi. O analista representa um personagem, é um ator, no sentido de Diderot, em seu texto “Paradoxo do ator” (DIDEROT, 1769/1985). Um ator faz o expectador ficar mais comovido pela representação da dor do que a vivência da própria dor  daquele que a sofre. O ator não é um bêbado e você que assiste, que se sente bêbado. Uma análise é o calculo do ridículo (FORBES, 1999, p. 50, 61, 67). Um adolescente, paciente do Genoma, veio para a primeira entrevista e na hora H não quis sair do carro, não quis ir à entrevista. Forbes, o entrevistador, vai até o carro, leva café para o rapaz que estava com algum adereço de time de futebol e conversam sobre isso. Não demorou para que a conversa se desenrolasse no consultório. O analista lacaniano é rigoroso, mas também flexível e quase um palhaço, como disse Lacan: Je suis a pite.

8. A clínica irônica

Da clínica de Lacan: Quem é paciente? Carta de Lacan a um analisante: “Eu espero você. Pacientemente”. (ALLOUCH, 1999, p. 86)

Da clínica de Forbes: A paciente suicida que vem da médica alergista. A verdade da paciente impactou a médica que, apavorada, a encaminhou ao analista. O analista a deixa esperando, passa vários pacientes na frente e ela reclama: O senhor não sabe que eu sou suicida? O analista: Minha senhora, do que nós vamos tratar, do suicídio ou da sua incompetência em se matar?

Na clínica irônica o analista não dá o mesmo valor que o analisando ao que é dito. Se o analista for solidário ao que é dito, não abre a clínica.  Na clínica irônica você muda rápido a expressão do sofrimento, a rapidez dá um efeito de chiste. A ironia é uma resposta fora do eixo que desloca o sujeito.

9. A interpretação descompleta

Você não diz nada! Quando o analista busca recuperar um significado anterior, do passado da pessoa, ele faz uma clínica ortopédica, de restabelecer o que era. O problema é que não temos um molde de nós mesmos. A interpretação descompleta é um meio-dizer. Coloca um enigma. Ela não põe culpa, mas responsabiliza o analisando (FORBES, 1999, p. 25-8). Esse bisturi pode deixar um mal-entendido, que não é um defeito, mas expressão do desejo, desejo rebelde à acomodação coletiva (p. 178).

10. O ressoar e a lógica sensível

A palavra, que antes dizia, hoje toca (FORBES, 2003, p. 28, 154). Genesini (2013) relata o caso de uma moça com distrofia muscular, que se queixa: “É difícil alguém se interessar por mim. Eu estava com um cara que me falou: você é tortinha.” Na discussão clínica, foi evocada uma possível intervenção: “- E aí, comeu? É um bisturi da ressonância. Do tortinha do corpo para tortinha de comer. Tira-se da tragédia e vai para o drama. Passamos de uma transmissão de razões à transmissão do ressoar. Jogo de palavras (raisonner e résonner). Não importa tanto a coerência, mas o impacto poético. A ressonância se encontra no nível do real, como um terceiro ou seja, o que faz acordo entre o corpo e a linguagem (Lacan, 1975-76, p. 40). Repito a citação: afirma-se no corpo e não na razão. O ressoar permite o laço social baseado na articulação de monólogos.

A supervisionanda tinha muita dificuldade em convencer sua analisante (sua primeira) a não operar o nariz. Lacan: Seu nariz é realmente feio? – Não. Então diga que um recém-nascido não seria oportuno. A expressão é nouveau-né, referida a nouveau nez, nariz novo.

11. O silêncio

Silêncio do Real. O silêncio tem a ver com o Real do corpo. Em um momento em uma análise, seja porque esgotou o simbólico, seja porque seu gesto foi direto ao real, isola-se os elementos do impacto e chega-se em uma coisa esquisita, estranha. A saída é a invenção. Mas como saber que a invenção não é  loucura? Porque é invenção e responsabilidade. Uma análise vai permitir que a pessoa encontre um amor para lidar com essa coisa esquisita que não foi marcada pela palavra, esse ponto de silêncio. (FORBES, 2003, p. 120)

12. A palavra poética

Palavras não são só palavras, os poetas que o digam. (FORBES, 2003, p. 207). Quem não experimentou o sabor das palavras? Exemplo de uma palavra poética como bisturi no caso de uma moça que fazia escarificações: As marcas são portos: eu passei por aqui. Os amantes se contam pelas marcas. É em face do real – do corpo do analista, de seu ser, como parlêtre, que realiza uma interpretação poética e de ressonância – que o analisando experimentará a passagem da presença do analista, disruptiva como a tiquê, para o “analista presente”, que ele levará consigo como essas “marcas propiciadoras” de novas respostas na vida, que não repitam sua ficção. … sua forma de gozo será do curto-circuito da palavra, apenas o ressoar. Como monólogos, assim perdendo a referência ao outro. (FORBES, 2012b, p. 82)

13. A presença do analista

O analista encarna a radical diferença do analisando. É o operador de uma exceção (FORBES, 2003, p. 83). Ele excede as dimensões da realidade e por isso é excessivo. Além do mais, o analista não se ausenta.

O caso a seguir marca o que seja a presença do analista (ALLOUCH, 1999). Primeira sessão com Lacan. A paciente pede a ele para retomar sua análise, pois seu analista tinha morrido e seria enterrado naquele dia. Lacan: Quando? Paciente: Agora. Lacan: Você não pretende ir ao enterro? Ela, hesitante: … sim. Lacan: Você dispõe de um meio de locomoção? Sim, diz a paciente. E Lacan, dirigindo-se à sua secretária: – Gloria, meu casaco! Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espera e na biblioteca, eis Lacan no carro daquela mulher, acompanhando-a ao enterro de seu ex-psicanalista. Foi assim a primeira sessão com Lacan.

14. O analista

O analista é um bisturi princeps. Não é sem consequência o analista que você escolhe. O bisturi principal numa análise é o próprio ser do analista. Os bisturis que ele utiliza são decorrência. Como visto acima, Freud (1912/69) já indicava ao médico utilizar seu inconsciente como instrumento da análise (p. 154). O inconsciente do analista é o bisturi por excelência.

Lacan aponta para um gozo impossível de satisfazer. Impossível. O analista é aquele que suporta este impossível que está além do semblante, mas estreitamente vinculado a ele. “O analista não pode lavar as mãos” (LACAN, 1973/2003, p. 554). 

Há uma forma de sintoma, fruto de uma análise, o osso duro a suportar: o psicanalista (FORBES, 2012b). O bisturi – o analista – está trabalhado no texto de Forbes (2014) O que esperar de um analista? “Temos hoje outro momento para a psicanálise e para o mundo. Não se trata aqui de fazer história e, sim, de fazer o futuro, em diferença ao passado, respondendo à questão sobre os desafios e impasses de uma psicanálise em um novo mundo, o de hoje. Há um novo saber fazer do analista cidadão.”

“O que esperar de um psicanalista?
Uma análise.” 

Elza Macedo, psicanalista, membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana, doutora em Ciências pela USP

Referências

ALLOUCH, Jean. – Alô, Lacan? – É claro que não. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

DIDEROT, DENIS. Paradoxo sobre o comediante. In: Os Pensadores – Diderot – Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 159-192.

FORBES, Jorge. Vergonha. Aula no IPLA, em 5 de agosto de 2013.  

FORBES, Jorge. O que esperar de um psicanalita? Texto apresentado nas Jornadas  de 2012 da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo. 2012a.

FORBES, Jorge. Inconsciente e Responsabilidade. Barueri: Manole, 2012b.

FORBES, Jorge. Não tenho a menor ideia. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 55, 2009, p. 67-72.  

FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? São Paulo: Best Seller, 2003.

FORBES, Jorge. Jacques Lacan, o analista do futuro. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 32, 2001, p. 52-53.  

FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

FREUD, Sigmund. (1926) A questão da Análise Leiga, vol. XX. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 205-293.

FREUD, Sigmund. (1916-1917 [1915-1917]) Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Parte III Teoria geral das neuroses (1917 [1916-1917]) Conferência XXVIII Terapia analítica, vol. XVI, p. 523-539. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, Sigmund. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, vol. XII. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p. 147-159. 

GENESINI, Teresa. Relato de um caso clínico. Genoma, 2013.

GLADWELL, Malcolm. O ponto de desequilíbrio. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

LACAN, Jacques. A Terceira, 1974. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 62, 2011, p. 11-34.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23 O sinthoma, 1975-76. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 

LACAN, Jacques. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, 1973.  Outros Escritos,  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 550-556. 

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1 Os escritos técnicos de Freud, 1953-54. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.

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PIERRE, Rey. Uma temporada com Lacan relato. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.