Por Marcelo Veras
O real não tem sentido, orientação ou ideais. Como algo assim pode causar efeitos no mundo em que vivemos?
Aprendemos com Lacan, sobretudo com os desenvolvimentos de sua segunda clínica, que o real não tem sentido, orientação ou ideais. Como algo assim pode causar efeitos no mundo em que vivemos? A psicanálise me fez ver que esta interrogação – e o esforço da humanidade em buscar respostas – sempre esbarra em um ponto obscuro, vazio de significação. Apesar disso, somos condenados a um animismo que tenta incessantemente dar um rosto, uma humanização, a este ponto obscuro. A insensatez do real ganha com esse animismo uma representação para “dar sua cara a tapa”. Não seria diferente com o que há de real no capitalismo. É mais fácil identificar o semblante da ganância, no gozo de uma indústria farmacêutica, de um big da FIFA, de um advogado oportunista do que reconhecer que há algo acéfalo na pulsão. Algo que permeia a trama capitalista e que é puro gozo inútil, gozo que não é reduzido a semblantes.
É justo esta fração inútil de gozo que nos permite transportar o “pas de rapport sexuel” lacaniano para o mundo dos negócios. É por isso que escuto com reservas a expressão “aliança do capitalismo com a ciência”, tão repetida entre nós psicanalistas. Eis uma aliança instável por princípio, já que o capitalismo não é um marido fiel. No campo psi, por exemplo, a aliança entre indústrias farmacêuticas e terapias cognitivo comportamentais foi bastante estudada em um livro recente de Agnès Aflalo[1].
Sua constatação é que os argumentos científicos para essa aliança estão longe de serem consistentes.
Contudo, o real em jogo neste gozo nos permite ir além dos semblantes e não ficarmos exclusivamente buscando faces para o mal. Mesmo porque vale aqui a apropriação indébita de Lacan e afirmar que “O” capitalista não existe. Além disso, lição deduzida de Freud em seu Mal-Estar na Civilização, a filantropia e o altruísmo a serviço de interesses obscuros são tão nefastos quanto o capitalismo.
Voltemos à aliança entre capitalismo e ciência. No momento atual, para o melhor e o pior, o peso do capital tem sido muito mais influente para desenvolvimento da pesquisa científica do que as ações governamentais. A pesquisa impulsionada pelos recursos dos Estados está cada vez mais submetida a cortes orçamentários globais e asfixias burocráticas. Não surpreende que nas universidades brasileiras as verbas públicas para pesquisa dividam espaço quase equitativo com a Petrobrás.
No Brasil até então, o marco regulatório da Ciência era a lei 10.973 de 2004. A experiência dos últimos dez anos mostrou como essa lei burocratizou e impôs um regime de caça às bruxas aos pesquisadores preocupando-se muito mais com o aumento do controle dos gastos públicos do que com sua finalidade de impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico. Porém, se os últimos dez anos deixaram marcas pelo peso burocrático sobre as ações científicas, o novo Código de Ciência e Tecnologia, prestes a sair, e que deve corrigir e substituir a lei de 2004, já mostra indícios de uma báscula acentuada para o outro polo, visando impulsionar muito mais a inovação tecnológica atrelada ao desenvolvimento produtivo nacional do que desengessar os pesquisadores, sobretudo os que se dedicam à ciência pura.
A presença dos recursos privados na ciência é uma tendência mundial. Vale
conferir o excelente artigo de William Broad no New York Times sobre a privatização da ciência americana[2]. As maiores fortunas globais estão destinando uma parcela cada vez maior de suas reservas à ciência. A filantropia nos Estados Unidos é responsável por um volume muito maior de investimentos em pesquisa do que o próprio governo americano. Somente o Hedge Funds dedica 350 milhões de dólares à pesquisa do autismo. Um analista da American Association for the Advancement of Science, Steven Edwards, faz um comentário relevante sobre o modo como estão sendo definidas as prioridades científicas no século XXI: muito mais por preferências individuais de homens bilionários do que pelas demandas e necessidades nacionais.
Por trás das excelentes intenções, o que se observa é que na maioria das vezes esses recursos são aplicados em doenças que atingem essa mesma elite bilionária (como a fibrose cística, o câncer de mama, o autismo), aumentando ainda mais o gap entre os mais ricos e os excluídos do paraíso americano. Pesquisas sobre doenças que afligem mais a população americana pobre e negra (como a anemia falciforme) recebem uma parcela consideravelmente menor de doações.
Finalizo pensando no nosso sinthoma lacaniano. Ele, que prima pela sua singularidade, é no fundo o que temos de mais universal, ele não poupa nem ricos, nem pobres. Algo contra a filantropia? Não podemos cuspir no prato em que comemos. O que seria da psicanálise, em seus primórdios, sem a boa vontade e o filantropismo de alguns que não se deixaram levar pela corrente médica dominante à sua época? Temos portanto duas possibilidades. Comecemos pela mais bizarra para os psicanalistas, ao menos para os que ralam na Saúde Mental: sim, a psicanálise é elitista e não sobrevive sem uma ajuda das elites. Será preciso que um milionário russo descubra a psicanálise e se dedique a apoiar a causa para que ela volte a recuperar o prestígio do século passado. Mas, há também uma outra conclusão possível: nem tudo que é exceção é elite. Do lado do sinthoma, somos todos excluídos. A psicanálise sobrevive não porque manteve o interesse das elites, mas porque se proletarizou.
Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise
[1] Aflalo, A., Autismo – novos espectros, novos mercados. KBR Editora, 2014
[2] N Y Times, 15 de Março de 2014: Billionaires With Big Ideas Are Privatizing American Science